Leitora: Margareth Santos
O romance de Carlos Manuel Álvarez nos apresenta uma visão contundente de uma Cuba contemporânea em que a urgência dita os atos das personagens que, cada qual a sua maneira, tenta sobreviver.
Dividida em cinco partes, a obra se constrói através de monólogos que constroem a vida de uma família que descortina um tempo de penúrias e ações ardilosas em prol de uma mínima subsistência.
A partir de uma organização progressiva, ouvimos, sempre na mesma ordem, as vozes do filho, da mãe, do pai e da filha. Os nomes só saberemos nos desdobramentos da narrativa: Diego, Mariana, Armando e María.
Cada qual destrincha sua própria história e articula sua situação anímica à do país: o filho está no serviço militar, de prontidão para uma guerra que nunca chega; a mãe, antes professora primária, sofre, no presente da narrativa, com duas situações que a aterrorizam: uma doença que provoca crises de epilepsia, que a impede de seguir trabalhando e ligações anônimas povoadas por insultos aos seus; o pai, um homem honesto e adepto convicto ao regime, administra um hotel de quatro estrelas e a filha, que deixara a faculdade, trabalha nesse mesmo hotel, onde estabelece uma pequena teia de pequenos furtos, suficientes para garantir algo frente à escassez imperante.
Pouco a pouco o título da obra vai ganhando sentido: expõe-se a ambígua sexualidade de Diego, de difícil manejo no meio militar, ao mesmo tempo em que o próprio anuncia ser o autor das chamadas anônimas à mãe; Mariana, desiludida com o tratamento contra as crises epiléticas, começa a automedicar-se como uma manobra suicida; Armando é demitido do hotel e destinado a um posto menor sob a acusação de roubo e María se vê frente ao dilema de seguir furtando ou demitir-se para não envergonhar o pai. Em todos os casos, as personagens encontram-se em uma queda vertiginosa.
Frente a tantas situações-limite, Carlos Manuel Álvarez surpreende o leitor com uma narrativa objetiva, manuseia a linguagem com uma sobriedade pouco vista: não há lamúrias, julgamentos, apenas a vida nua e crua. Um exemplo digno de citação delineia-se em uma recuperação do passado que resgata a imagem de uma Mariana jovem e professora. Ao lidar com carinho um aluno, é presenteada pela mãe do menino com um pacote de filés de frango. O “mimo” desata a memória gustativa de Mariana e traduz os anos de carência de qualquer tipo de carne nas refeições da família. Para o leitor está claro que os filés fazem parte da cadeia nacional de pequenos furtos instaurada em toda a ilha. A professora aceita o pacote e, sem perder tempo, volta para casa e decide cozinhá-los. Afinal, não se podia correr o risco de sofrer com um dos muitos apagões na cidade, era preciso prepará-los à luz do dia.
Durante a refeição nos damos conta da urgência em seus mínimos detalhes, pois o jantar dura “exatas e irrepetíveis onze colheradas”. Os filhos, ainda pequenos, acostumados a comer farinha com açúcar, brincam com a comida, o que desata uma ira cautelosa dos pais: preferem a farinha e esta lhes é concedida. Enquanto isso, os pais, furtivamente, dedicam-se a devorar os restos de comida deixados no prato pelas crianças. Não há peso na consciência, apenas o início de um declínio impossível de conter.
Jézio H.B.Gutierre, Professor assistente doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. De 2001 a 2015 exerceu a função de...
LER MAIS
Pedro Pacífico, Em 2017, você começou a dar sua opinião sobre os livros que lia nas mídias sociais. O que a inspirou a dar...
LER MAIS
Genero
Inscrição ao boletim eletrônico
Click here
Bem-vindo ao site New Spanish Books, um guia dos novos...