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Jézio H.B.Gutierre
Professor assistente doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. De 2001 a 2015 exerceu a função de Editor Executivo da Fundação Editora da Unesp. Desde 2015 responde pelo cargo de diretor-presidente da Fundação Editora da Unesp e, paralelamente, mantém a função de "publisher" da mesma instituição.
É bem conhecida a boutade de Bernard Shaw, que se referia aos EUA e ao Reino Unido como dois países separados pela mesma língua. De fato, a proximidade é muitas vezes, um tanto paradoxalmente, um obstáculo adicional à comunicação entre nações. Não é infrequente que países de tradições culturais e histórias entrelaçadas, geografias vizinhas e línguas aparentadas cultivem orgulhoso distanciamento, quando não antagonismos belicosos. A convivência cultural e especificamente livreira entre Espanha, Portugal e todos os demais países de raiz ibérica, Brasil incluído, mesmo que reconhecidos os devidos parentescos, é exemplar e suscita consideração pelas lacunas, desatenção recíproca e inconstâncias que apresenta.
Evidentemente, essa fragilidade da comunicação internacional – facilmente atestada em qualquer livraria (ou galeria, ou cinema, ou mesmo canais de TV, estações de rádio etc.) – é lastimável por vários motivos. O mais imediato dentre eles é o que pode ser aplicado a qualquer isolamento cultural: o empobrecimento da recepção e alheamento de heranças culturais potencialmente preciosas. Mas quando falamos de barreiras entre países próximos, ao lado dos gravames usuais, podemos acrescentar outro, que torna ainda mais custoso o que já seria lamentável: ao se afastar de culturas próximas, o receptor não apenas cerceia a expansão de seu universo cognitivo e estético, mas depaupera a consciência de sua própria identificação. A formação da identidade nacional, tema tão frequente na historiografia latino-americana, tem, entre seus elementos constitutivos, a aferição de paralelos e os registros estrangeiros, “o olhar do outro”, que nos descrevem e contribuem para a definição do que somos. A consideração cultural de seu próximo permite, afinal, a autoanálise iluminadora, e sua ausência impõe limites a esse desejável autoconhecimento.
Mas, se as vantagens do intercâmbio cultural parecem flagrantes, especialmente para o caso de países ou nações próximos, como concretizá-lo ou estimulá-lo? Ora, ao menos no âmbito editorial, traduções são justificadamente reconhecidas como canais tão triviais como essenciais para a preservação desse trânsito virtuoso. E, ao menos em princípio, franqueiam chaves para uma aproximação robusta e estável. Mas aqui, novamente, para línguas próximas como o castelhano e o português, intervêm dificuldades específicas e, para alguns, contraintuitivas. A trajetória do livro espanhol no Brasil expõe um pouco desses obstáculos. Afora a evidente concentração massiva imposta pela dinâmica imperial da indústria cultural e de restrições financeiras comezinhas (dificuldades que afetam indiscriminadamente quase todos os idiomas não dominantes), coexistem entre editores, de um lado, uma serena ignorância sobre a produção bibliográfica espanhola, e, de outro, a impressão reiterada de que a proximidade idiomática permite acesso imediato ao original, o que justificaria frequência comedida dessas obras em programas editoriais nacionais. De fato, não é incomum ouvir de editores que publicá-las equivaleria a provável fracasso comercial, uma vez que o público interessado, caso exista, já seria alimentado pela compra do livro na língua original.
Como editor, gostaria de comentar essas duas barreiras comuns à absorção mais constante e regular da produção bibliográfica espanhola. Começando pela última: a presumida disponibilidade desses livros. O que aparentemente se esquece nesses casos é a própria função contemporânea de editoras. Mesmo depois de Gutenberg, a produção editorial nunca deixou de ser complicada e até recentemente demandava especialidades profissionais que desvendassem os mistérios e detalhes editoriais e gráficos inerentes à feitura de um volume. Com a chegada dos programas e gráficas digitais, isso tudo foi democratizado de maneira vertiginosa, facilitando fenômenos como o self-publishing. Em princípio, uma única pessoa, parcamente treinada, mas aparelhada com os programas adequados, é capaz de elaborar um arquivo suficientemente aperfeiçoado para impressão – e mesmo esse passo poderia ser suprimido, caso fosse prevista apenas a publicação on-line. Isso fez com que, cada vez mais, as editoras se reconhecessem como hubs de captação, elaboração e, talvez principalmente, de disseminação de conteúdos. Especialmente em um país como o Brasil, a distribuição desses textos depende fundamentalmente de toda uma estrutura de distribuição física e/ou digital profissional. Assim, a ênfase anterior sobre a produção editorial é agora justificadamente partilhada pelo esforço de divulgação e distribuição livreira. Fatores como esses, que sempre foram elementos constitutivos da pauta editorial, assumem hoje relevo inédito, inclusive para a definição do que seria uma “editora madura”.
Caso admitamos a centralidade atual da distribuição de conteúdos e reconheçamos ser esta tarefa exigente, que envolve intenso esforço profissional, fica claro por que o livro estrangeiro, mesmo se originalmente publicado em idioma próximo ao português e acessível ao público ilustrado (pressuposição, aliás, extremamente discutível), não alcançaria o leitor potencial, ou seja, exatamente aquilo que hoje exige atenção concentrada de editoras. Dessa forma, podemos ver que o livro espanhol (e em espanhol) não pode isoladamente, por si mesmo, cumprir seu destino desejável e natural. A grande maioria do público interessado só terá acesso a ele caso seja traduzido, produzido e, principalmente, adequadamente distribuído em circuito nacional. E, uma vez cumprida essa trajetória, nada impede, como atestado em várias ocasiões, que livros espanhóis sejam bem-sucedidos, tanto quanto qualquer outro livro traduzido.
O primeiro obstáculo, portanto, decorre de uma falácia: a proximidade da língua, em si, não prejudica, de saída, a trajetória comercial desses livros. Cometem erro simplório os editores que, baseados em anedotas e lugar-comum, pensam de outra forma. No entanto, o outro empecilho é um tanto mais complexo e demanda atenção mais demorada. Não é incomum que publishers ou conselheiros editoriais simplesmente não tenham o necessário repertório para considerar adequadamente o vigor do corpus livreiro espanhol. Toda sorte de preconcepções – que muito tipicamente também afetam as obras brasileiras no exterior – impedem a apreciação devida, normalmente atribuída a alguma fragilidade imaginada das obras disponíveis. Seria esse novamente um exemplo da desconfiança decorrente da proximidade? Uma instintiva impressão de redundância em relação ao já publicado por aqui? Ou mesmo de autocrítica corrosiva expressa pelo desprezo ao que lhe é próximo? Seja como for, talvez vítimas do já mencionado imperialismo cultural, especialmente do mundo anglo-saxão, os títulos espanhóis são “culpados até prova em contrário” e contam, por vezes, com tênue, mas impenitente má vontade por parte de editores brasileiros.
Mas como transpor essa barreira comum? A construção de pontes culturais, e vejo como tal os livros traduzidos, é tarefa lenta e sujeita a variáveis dificilmente controláveis e até mesmo muitas vezes indistinguíveis. Não com o intuito de desmerecer a solidez e dimensão dessa barreira, lanço na sequência um brevíssimo olhar, esboço de um camafeu – confessadamente subjetivo e escorado em minhas próprias preferências pessoais – sobre algumas das ricas alternativas espanholas apenas parcialmente exploradas pela edição nacional, talvez assim suscitando uma pequena fresta, não mais que isso, de onde se divise o oceano de oportunidades ainda aberto aos publishers nacionais. Para isso, distingamos duas áreas específicas do universo editorial: a Literatura e a Filosofia.
Em ambas, a presença da Espanha sempre foi assegurada, desde meados da Idade Média, passando pelo chamado “Siglo de Oro” e o rico barroco espanhol, por uma enorme série de poetas, ensaístas e dramaturgos de primeira linha, para muito além do onipresente Cervantes. Mas não é para El cantar de Mio Cid, o doce S. Juan de la Cruz, o impressionante Bartolomé de las Casas ou os apaixonantes Lope de Vega ou Calderón de la Barca que gostaria de chamar atenção, mas, sim, para a perseverança dessa tradição de excelência, que adentra pelo século XIX e chega aos nossos dias. Essa caminhada começa pelo realismo e naturalismo espanhóis, em que despontam Blasco Ibañez e Pérez Galdós, passando pelo Modernismo, em que são encontrados Antonio Machado, García Lorca e Juan Ramón Jiménez, e chegando até a literatura pós-franquista, com expoentes como Jorge Semprún, Javier Marías, Fernando Arrabal, entre tantos outros. Evidentemente, todos esses autores não chegam sequer a dar uma ideia imprecisa do conjunto das letras espanholas, mas evidenciam alguns de seus pontos inesquecíveis, os quais prenunciam outros tantos talentos atualmente consagrados, como Félix Palma, Antonio Muñoz Molina, Elvira Navarro e Sónia Hernández, que, por sua vez, já anunciam uma pujante nova geração.
Até por dever de ofício e de formação, não posso deixar de lembrar e agregar aos anteriores outros tantos nomes icônicos na trajetória do pensamento hispânico, desta feita especificamente na área da filosofia. Neste caso, também honrando tradição que se estende desde os lógicos e tomistas da Idade Média e passa pelos literatos filósofos da Renascença e do Barroco, chega-se à contemporaneidade, com Santayana, Unamuno, Ortega y Gasset, Savater, Julián Marías e Ferrater Mora – sendo que este último até hoje acompanha, com seus manuais e dicionários, o grande contingente brasileiro de estudantes de filosofia.
Mas obviamente todos esses exemplos formam em seu conjunto apenas uma caricatura imprecisa e, como disse, sugerem muito pouco do que ainda é disponível. Como qualquer observador não especializado, mas atento, do exuberante mundo editorial ibérico pode inferir, as possibilidades são quase ilimitadas. E se já é bem atestada a influência exercida no Brasil por obras espanholas em vários campos, certamente outros tantos títulos nessas e nas demais áreas da erudição científica e das artes ainda esperam pela atenção editorial que merecem.
É lugar-comum, mas nem por isso menos verdadeiro, que o aprendizado de uma nova língua dá acesso a novos mundos. A recompensa cultural adquirida pela atenção a nichos editoriais inexplorados é grande e usufruída por todos. Por essas e outras, resta augurar que a proximidade e os laços que nos ligam à Espanha não aprofundem nosso desconhecimento mútuo.
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