Leitor: Rodrigo Petronio
Um escritor pessimista e angustiado escreve as palavras que o leitor lê em 9 de maio de 2015, na avenida Ranillas, em uma cidade ao norte da Espanha. O eixo de narração de Ordesa é primado e caleidoscópico. Apresenta informações sobre o presente e o passado do narrador-escritor em uma torvelinho de imagens e eventos, fracionado em 157 capítulos que oscilam entre uma e cinco páginas. Essa estrutura produz uma sensação de vertigem no leitor. O nadador é vertiginoso e declarativo, diz ver coisas e ter contato com entidades, com mortos e com fantasmas, e que ninguém sabe o que seria o amor. Uma passagem sugere que o narrador nos conta e visualiza todas suas memórias nos últimos cinco minutos de sua vida.
Relata o seu divórcio, a vida atual com os dois filhos e as dificuldades financeiras. Os filhos são nomeados como Vivaldi e Brahms. Entretanto, essa é uma estratégia narrativa muito interessante. Como apaixonado por música, o narrador cria nomes mentas e batiza alguns personagens com os nomes de compositores. Às vezes rela para o leitor o nome do personagem e do compositor a que ele corresponde. Outras vezes essa motivação fica oculta. Isso produz um efeito de estranhamento, pois acabamos seguindo as características dos personagens mediante a tonalidade afetiva que o narrador atribui aos compositores com os quais os batiza. O romance possui então um recurso de dupla nomeação dos personagens, ambas ficcionais.
Logo no começo, contrastando com esse aspecto de devaneio e de ficção, o romance entremeia fotografias de objetos, paisagens e pessoas que de fato existiram, dentre eles fotografias que parecem ser do próprio autor Manuel Vilas. Esse recurso que será utilizado ao longo de toda narrativa. O pai do narrador não foi ao enterro da avó e, ao morrer, o pai foi incinerado. Essas informações são reiteradas pelo narrador, mas a princípio não compreendemos o porquê. A mãe do narrador morreu há um ano. O leitor tem acesso a reminiscências e recordações do pai e da avó a partir de suas mortes. Longas descrições do adoecimentos e da morte da mãe são mescladas a recordações de maços de cigarro dos anos 1970.
Referências autoficcionais de Vilas a Babastro, cidade do autor e cidade onde viveram e morreram os pais do narrador. A mãe introduz o narrador no vício do cigarro. Este também passa a ter experiências com ansiolíticos e sonhos bizarros. Descrições de Madrid como o coração de uma besta. Retorna ao tema do divórcio, que se confunde com a viuvez, gerando uma ambiguidade em relação à sua esposa. Também fala do apartamento pequeno que comprou depois desse fato. A abstinência de álcool e a experiência da lentidão dos movimentos corporais são constantes, como leitmotiven que o leitor ainda não compreende, mas que são enunciados pelo narrador.
O grande signo descritivo e motivo que percorre e nomeia o romance é Ordesa. Ordesa é um topônimo. Trata-se de um vale nos Pirineus pelo qual o pai do narrador tem uma devoção religiosa. Em Ordesa há uma montanha chamada Monte Perdido. Mais do que morrer, segundo reflexões existenciais do pai do narrador, seu pai se perdera. Perder-se é uma espécie de morte de segundo grau. Uma dissolução completa e irreversível. E, por isso, o pai convertera-se em um Monte Perdido: Ordesa. Nesse sentido, essa imagem-conceito de Ordesa acaba tendo uma função de estruturar todas as camadas factuais da narrativa. Mais do que isso: funciona como signo da dissolução do narrador e da dissolução dos laços afetivos e familiares, que o narrador supõe que nunca tenham existindo.
Visualizamos descrições da situação de pobreza dos pais e a simplicidade de suas origens. Somos conduzidos por lembranças do povoado de Jaca, onde o pai o levava nas férias. A adolescência e o distanciamento físico dos pais. Tomamos contato com reminiscências de objetos e coisas que se foram. A morte dos objetos é importante porque demarca a desaparição da matéria, a humilde matéria que nos acompanhou enquanto a vida esteve se cumprindo. O leitor tem acesso a imagens do narrador fumando com a mãe. Lembranças de esqui na neve durante os anos 1970 a partir de uma fotografia. Chegaram ao topo do monte com o carro Seat 1430. O narrador se foca em uma fotografia do casamento dos pais. O casamento do narrador com sua antiga esposa teria sido uma forma racional de unir o narrador a seus pais. Os pais e os antepassados voltam a lhe aparecer em forma de espíritos. O nome e o número de telefone do pai ainda se encontra disponível na internet.
Nunca a família pronunciou: somos uma família. Isso gerou um estranho vínculo, que o narrador procura compreender. A mãe nunca gostou de dar beijos em ninguém. Por seu lado, o irmão comunica a morte da mãe para o narrador com a seguinte frase: “Tua mãe está morta”. Por que não nossa mãe está morta? Por que não mamãe está morta? Essa frase leva o narrador a levantar diversas imagens que demonstram a inexistência de vínculos afetivos entre os membros de sua família. Uma família que coexistiu, mas que nunca efetivamente se comunicou e se relacionou. Uma família que se dissipou e que morreu. Em uma palavra: Ordesa.
Biografia
Manuel Vilas é um premiado poeta e narrador espanhol nascido na Galiza (Barbastro, 1962). Entre os seus livros de poesia destacam-se El cielo (2000); Resurrección (2005; XV Premio Jaime Gil de Biedma); Calor (2008; VI Premio Fray Luis de León); Gran Vilas (2012; XXXIII Premio Ciudad de Melilla) e El hundimiento (2015; XVII Premio Internacional de Poesía Generación del 27). A sua poesia reunida publicou-se em 2010 com o título Amor, e a antologia Poesía completa saiu em 2016. É autor dos romances España (2008), que foi eleito pela revista literária Quimera como um dos dez romances mais importantes da primeira década do século XXI; Aire Nuestro (2009), distinguido com o Prémio Cálamo; Los inmortales (2012) e El luminoso regalo (2013). Também é autor de livros de contos e crónicas. Além dos prémios citados, venceu o Premio Llanes de literatura de viagens, e o Premio de Las Letras Aragonesas, em 2015. A sua obra poética e narrativa figura nas principais antologias espanholas. Escreve habitualmente na imprensa espanhola. Em tudo havia beleza (publicado em Espanha com o título Ordesa) é o seu mais recente romance e o primeiro a ser publicado em Portugal.
Avaliação
Apresenta informações sobre o presente e o passado do narrador-escritor em uma torvelinho de imagens e eventos, fracionado em 157 capítulos cuja extensão oscila entre uma e cinco páginas. Essa estrutura produz uma sensação de vertigem no leitor. O autor é um mestre de frases e de máximas conceituais: O envelhecimento é igualitário. São duas verdades distintas, mas ambas são verdades: a do livro e a da vida. E juntas fundam uma mentira. O dinheiro é a linguagem de Deus. Pode-se viver sem a verdade, pois a verdade é a forma mais vertiginosa da vaidade. Ninguém é testemunho de seu próprio nascimento. Quando a vida nos deixa ver o casamento entre a alegria e o terror, estamos em plenitude. Trata-se de um livro excelente, bem amarrado em torno da imagem-conceito Ordesa, potente em sua fluência narrativa, incômodo em sua voz seca e na exposição do vazio que cerca o narrador-protagonista. Uma excelente obra da ficção contemporânea.
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