La ternera é um soco no estômago. E essa constatação se deve tanto pela precisão de sua escritura como por seu conteúdo. Um romance cromático, tátil, olfativo e visceral.
Tudo isso sem que se valha de recursos narrativos fáceis, sem que se recorra a imagens escatológicas, ou ao verbo rasteiro, ao contrário, a obra alinhava um tecido muito difícil de coser: a visão infantil e a mediação da voz narradora adulta.
E essa sutura está confeccionada por uma narrativa direta, mas o mesmo tempo extremamente poética, e nem por isso menos dolorosa, posto que retrata a história de uma menina de cinco anos que sofre abusos sexuais por parte de um vizinho açougueiro, com quem a menina lancha todas as tardes, por conta dos afazeres de um pai vendedor, muito preocupado com seus clientes e uma mãe poetisa, distraída em meio a seus versos.
Assim, ao longo do romance, os pais, tão ocupados com outras coisas, ignoram o que se passa diante de seus olhos e são incapazes de perceber as atitudes da criança, que passa por um processo de ensimesmamento, marcado por longos silêncios, por uma apatia crescente e por atos de resistência, tais como o de deixar de comer carne.
Esses mecanismos de autodefesa servem como impulso no romance para o uso de imagens potentes e metáforas contundentes, como a cena em que se descreve a mãe preparando um pedaço de carne de vaca (“ternera”, daí o título), talvez um dos pontos mais altos da narrativa: esse ato cotidiano e doméstico desperta uma longa reflexão —equilibrada entre o pensamento infantil e uma sutil mediação da voz narrativa adulta— que começa a desenhar-se na visão nauseante dos cartazes que anunciam os distintos tipos de carne na visita ao açougue: a carne da promoção, a de segunda, a de primeira, ou seja, a de terneiro.
À medida que a mente infantil vai elaborando a caracterização da carne de terneiro como algo caro, tenro, saboroso, ela chega à contundente conclusão de que ela não era apenas uma carne de primeira, mas, sobretudo uma carne “de primeira vez”.
Essa imagem poderosa se erige na forma fragmentária proposta no romance, composto a partir de capítulos dispostos como pequenos relatos, que vão conformando-se como um quebra-cabeças que a mente infantil vai, pouco a pouco, montando, para chegar ao retrato do horror.
São peças diminutas que se encaixam a partir de um manejo sinestésico surpreendente: o leitor é capaz de ouvir os silêncios incômodos, disseminados ao longo de seus “micro-relatos”, de sentir o cheiro de água sanitária daquele lavabo tão limpo e tão sujo ao mesmo tempo e de embaraçar-se pela viscosidade de certas imagens.
Ainda que rumo ao final, a autora perca um pouco de vista a voz infantil e a reflexão adulta (com seus arroubos literários) predomine, isso não diminui o brilho do romance, que termina tão incômodo como em seu princípio, com sua prosa vigorosa e seu tema necessário.
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