Leitora: Livia Deorsola
A ideia do mal e suas manifestações físicas e psicológicas nas pessoas e na história da humanidade é o tema que atravessa todos os contos de La mala entraña (Baile del Sol, 2019), primorosa coletânea da escritora espanhola Elena Alonso Frayle (Bilbao, 1965).
Mona é o terceiro livro publicado pela escritora argentina Pola Oloixarac (Buenos Aires, 1977), algo conhecida no Brasil por ter participado da Festa Literária de Paraty, em 2011, por ocasião do lançamento de seu primeiro e bem recebido romance, As teorias selvagens (Benvirá, trad. de Marcelo Barbão). Se na estreia Pola dedicou sua língua afiada a ridicularizar os agentes sociais progressistas em seu país, em Mona suas agulhadas ganham ares internacionais: mantendo certa comicidade já testada, volta-se agora para um grupo de escritores contemporâneos de várias partes do mundo, ao que parece mais interessados em publicidade e prestígio que de fato em escrever. Estão todos reunidos em um idílico balneário sueco, numa espécie de festival literário que, ao final de alguns dias de muitas atividades e conferências, premiará um dos presentes com uma das láureas mais importantes da Europa. Assim forma-se o palco para este thriller literário, que aposta numa atmosfera feita de violência latente, hedonismo e, quando sobra tempo, alguma literatura.
O título do livro é o nome da protagonista, uma jovem escritora peruana cujo primeiro romance teve grande êxito e lhe rendeu reconhecimento entre os seus, “em um momento em que ser ‘mulher e não branca’ constituía, no vade-mécum do racismo generoso dos Estados Unidos, uma forma de capital”. Mona dá aulas na Universidade Stanford, na Califórnia, lugar que teve papel irônico na refundação de sua identidade latina. “Nunca lhe tinha ocorrido se definir como indígena, mas as universidades compartilhavam valores essenciais com os zoológicos clássicos, onde a diversidade marcava sua atração e prestígio”, diz um narrador ferino.
Aliás, “a questão latino-americana” é abordada ao longo do livro, tanto sob o ponto de vista individual quanto do ponto de vista do lugar que essa literatura e seu idioma ocupam no mundo depois do Boom dos anos 1960/70. Nos dois aspectos, em festivais como esse, a protagonista depara com chavões que ainda perduram nas mentes europeias e norte-americanas, ao mesmo tempo que encara o fato de que muitos escritores se apropriam, por vezes – com ou sem legitimidade? –, de sua cor local para se inserir no universa literário, feito “produtores de groselha de mercadinhos orgânicos”. Uma das cenas que evidenciam a questão aparece logo no começo do livro, a apresentação de um dos escritores do grupo, o iraniano Abdullah, que desde muito jovem mora na Suécia mas ganha dinheiro escrevendo sobre os horrores de uma guerra que ele não sofreu.
Em meio aos participantes, Mona tenta a todo custo observar o que pode à distância. Por algum motivo que só se revelará próximo do fim do livro, ela recusa por todos os meios – celular, Skype e outras mídias – a procura obstinada de um sujeito chamado Antonio, ao que parece, um par amoroso. Enquanto isso, abusa do álcool e vive quase o tempo todo sob os efeitos de valium, tentando fugir de fantasmas que o leitor não vislumbra de imediato. Nos superficiais contatos que trava com uma escritora japonesa, uma israelense, um sueco, um argelino, um dinamarquês, um colombiano (este, conhecido de outros carnavais), além de alguns tradutores, descortinam-se vaidades, frustrações e a devoção pelo ato de escrever, sem que necessariamente se escreva algo notável ou até mesmo inédito. Quase tudo é revestido por um intelectualismo vazio ou pela ironia, além da crença geral de que escritores estejam acima dos reles mortais. “Pensar que o que os intelectuais discutem entre eles são produtos de uma casta que não se derrama sobre o mundo era uma necessidade total; nas torres de cristal dos intelectuais era aonde primeiro voavam os vidros em pedaços”, pensa Mona. Outro trecho diz: “Por que fingir que acreditamos na existência de um mundo comum, se só existe literatura?”.
Esse ambiente, que à primeira vista pode parecer um salão cultural pedante e superficial, é modificado pelo olhar amedrontado e reticente de Mona, intensificado pelo encontro da protagonista com uma raposa morta, um grupo de homens louros e soturnos a vagar pelo balneário sem participar do evento, pelas ligações insistentes de Antonio (por que ela não responde?, por que foge dele?), pela abordagem inquisitiva de sua tradutora ao francês numa sauna e pela nudez ostensiva de alguns participantes do festival. Internamente, a escritora peruana parece estar a todo momento em busca de prazer, sobretudo sexual, mas permanece à beira da dissolução. Há algo sempre prestes a explodir – “Quantas coisas ficavam sepultadas sob o silêncio?” –, algo que a espreita a todo momento.
O mais interessante de sua personalidade, no entanto, é aquilo que a personagem anuncia e põe em prática em um imaginário eminentemente masculino, apesar do pensamento pretensamente ilustrado que o acompanha. Na tradição literária em que os protagonistas são artistas ou escritores homens, na idealização de uma vida alimentada pela arte, eles em geral estão consumindo quantidades oceânicas de álcool – de preferência um bom uísque ou um bom vinho, cigarro na mão –, rodeado por possibilidades sexuais e – o que os deixa mais desejáveis ou queridos – sempre atravessados por angústias existenciais ou traumas. A boemia, a liberdade sexual e até mesmo as marcas emocionais que a tornasse atraente dificilmente são concedidas a uma protagonista mulher.
Mas o descrito acima é Mona. Até que a autora nos faz pôr os pés no chão e, por meio de um episódio de extrema violência, volta a nos lembrar o que um homem, inclusive considerado “intelectual”, é capaz de fazer para subjugar uma mulher. Mona carrega em si um trauma que só uma mulher pode carregar. Não à toa, embora estando no Norte do planeta, ela não deixa de acompanhar assiduamente pela internet o caso de uma menina peruana que desaparece em Lima sem deixar rastros.
Enquanto o caldeirão interior da protagonista se agita, ela tenta seguir, e às vezes até consegue contribuir com lucidez, os debates acacianos que vão sendo colocados à mesa. Sobre poesia, “Nunca saberemos o que é a verdadeira poesia, mas o que torna um poema reconhecível é a sensação de que te rouba: na era do tecnocapitalismo, não existe o sublime e portanto a poesia tem que incluir a sensação de roubo, a intuição da comparação e a competência, e o valor devia ser totalmente acidental [...]”. Com o colega colombiano, o assunto é política: “O capitalismo devorou completamente a esquerda, que já não tem o único capital que lhes era próprio: as boas causas. Agora a esquerda é a forma do sentido comum mais reacionário; não tem nada a ver com o pensamento crítico”.
Todos esses temas soam às vezes mais, às vezes menos entediantes para Mona, que só fica de fato à vontade para falar quando conhece Sven, por quem sente imediata atração. Não por acaso, ele é um escritor de não ficção. Embora sueco, Sven fala um espanhol bastante simpático, porém um tanto insosso; mas não importa: é alguém que ela não repele, o único de seus interlocutores a quem doa calor verdadeiro. No diálogo com Sven é que surgem os tópicos que realmente parecem importar: o idioma e o amor, talvez os únicos ingredientes que salvam não a literatura, mas quem a pratica.
O livro se encerra de forma vertiginosa e aberta – do que não se pode falar aqui sob o risco do spoiler. Supostamente desencaixado da toada do resto da narrativa, o desfecho nada mais é do que mais uma preciosa informação sobre a protagonista, à deriva e nada confiável.
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