A fotografia e o espaço
Reescrever e compreender a própria história aos 35 anos a partir de uma fotografia de sua família é o mote do romance autobiográfico de Laura Ferrero. Filha de pais separados, nascida nos anos 1980, a protagonista tenta entrevistar seus pais e tios para compreender o que aconteceu com eles e por que ela nunca se havia visto em uma família, com o pai e a mãe juntos, até o momento em que seu tio, durante um encontro natalino, lhe oferece esse retrato.
A narrativa é sensível, irônica, cortante e constrói um retrato da geração que virou o século no compasso dos avanços da internet e da telefonia móvel, acompanhou as viagens espaciais pela televisão e faz parte daquela parcela da sociedade espanhola, ou ocidental, que valoriza a aparência e o consumo, em detrimento da cultura, da leitura; que valoriza a psicanálise e a ciência, mas também a questiona.
Acompanhamos a história da protagonista, cujo nome não é explicitado, apenas nomeada como Kuki, uma espécie de pseudônimo ou heterônimo de determinada fase de seu período escolar. Sua mãe e sua madrasta se chamam Clara; seu pai, Jaume, tem o nome alterado para Jaime, pela segunda esposa, duplicações que intensificam a tensão familiar, entre o primeiro casal, entre os pais e a filha.
Os capítulos autobiográficos são intercalados com narrativas sobre viagens à lua, e as reflexões entre a viagem interior, a investigação da história familiar e as viagens espaciais lançam luzes umas sobre as outras. Fotos ausentes, vazios no álbum, lacunas nas relações familiares, silêncios nas conversas, interrupções na narrativa, os mistérios da própria vida (na terra e no espaço), as incógnitas sobre o futuro, os imprevistos – tudo está em aberto.
A busca de informações sobre a família e outras fotos é infrutífera. As fotografias antigas foram destruídas pelo avô e pelo pai. De uma delas, recolhe os fragmentos e cola, e se pode dizer que ela faz o mesmo metaforicamente com as narrativas sobre o passado que seus pais apresentam, assim como sua madrasta e seus tios, desencontradas, às vezes contraditórias.
As relações familiares, os conflitos e os traumas se desdobram, e há sempre novos fragmentos a serem reorganizados, à medida que o tempo passa, a protagonista cresce, a história avança.
O relacionamento da protagonista com a mãe e com o pai, e com suas novas famílias, é retratado em várias fases e conduz a interpretações diversas por ela, mas também pelos leitores. Caminhando para o final, a mãe é diagnosticada com linfoma, e a redação do livro – continuamente explicitada – se interrompe para dar lugar a uma espécie de diário sobre a evolução da doença e do tratamento. Esse fato propicia o reencontro de seus pais, novas revelações e autoavaliações, que permitem retomar o projeto do livro.
Várias obras literárias constituem o intertexto, ao serem mencionadas a partir do título, da síntese, do enredo, de citações e constituindo epígrafes. Destacam-se Solus Rex e “Última Thule”, de Nabokov, sobre os quais discorre na abertura do livro e retoma mais adiante; O primeiro homem, de Albert Camus, tema de sua tese de doutorado; o discurso de John Coetzee, quando recebeu o Prêmio Nobel, entre outras.
A pergunta “Puede la fotografía sustituir a la historia?”, que aparece quase na metade da narrativa (p. 144), pode ser um fio condutor para percorrer as páginas. Ao concluir-se o relato, e ao concluirmos a leitura, invertê-la pode ser uma possibilidade de resposta: “Puede la historia sustituir a la fotografía?”.
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