Leitora Gênese Andrade
Reflexões não idealizadas sobre a maternidade, os relacionamentos entre casais heterossexuais, a violência contra a mulher e as relações familiares são os principais temas de Casas vacías, o primeiro romance da mexicana residente em Madri, Brenda Navarro. É muito difícil sintetizá-lo sem fazer revelações que destroem o suspense que o caracteriza e é um de seus principais motores.
Duas mulheres contam suas histórias em capítulos alternados – seis no total, organizados em três partes. Suas histórias correm em paralelo e se cruzam, sem que elas jamais se aproximem.
As partes são indicadas como primeira, segunda e terceira, mas os capítulos não são numerados. Todos se iniciam com epígrafes constituídas por versos de Wislawa Szymborska – poeta polonesa, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 1996, que vem conquistando leitores também no Brasil –, que aprofundam a reflexão que o texto de Brenda Navarro nos propõe.
No primeiro, terceiro e quinto capítulos, acompanhamos a história do desaparecimento de Daniel, uma criança de 3 anos que some da vista da mãe, em um piscar de olhos, enquanto brinca em um parque e ela vê mensagens no celular, em torno do fim de seu relacionamento com Vladimir, seu amante.
O livro inicia-se com esse fato, que a mãe rememora e, à medida que acompanhamos o fluxo de seus pensamentos, vamos nos inteirando de cómo era sua vida antes e depois desse episódio.
No segundo, quarto e sexto capítulos, acompanhamos como a mãe lida com Leonel, uma criança autista. No quarto capítulo, o leitor fica sabendo que ela não é a mãe verdadeira da criança, e sim sua raptora, e as duas histórias começam a se cruzar. No sexto capítulo, Leonel também irá desaparecer, e o desfecho é uma tentativa de resposta à cena inicial, instaurando certa circularidade à estrutura.
À medida que a história de vida das protagonistas é revelada, surgem outras questões sociais complexas, como o preconceito com estrangeiros na Espanha e no México; o racismo; o frequente desaparecimento de pessoas no México; a tentativa dos mexicanos de cruzar a fronteira em busca de melhores condições de vida; a insalubridade, a falta de segurança e a impunidade relacionadas a questões trabalhistas; a desigualdade social, de forma ampla; a violência contra a mulher, acima de tudo.
Inevitavelmente, as reflexões sobre a questão dos desaparecidos se ampliam, remetendo-nos aos desaparecimentos por motivos diversos: tráfico de crianças, queima de arquivo relacionada à violência policial e ao tráfico de drogas, os desaparecidos políticos em consequência da censura e repressão nas ditaduras latino-americanas, e de conflitos relacionados ao poder em vários países.
Te imaginas todo menos que un día vas a despertar com la pesadez de un desaparecido. ¿Qué es un desaparecido? Es un fantasma que te persigue como si fuera parte de una esquizofrenia (p. 17).
[...] muerto es mejor que desaparecido. Los desaparecidos son fosas comunes que se nos abren por dentro y quienes las sufrimos lo único que ansiamos es poder enterrarlos ya (p. 118).
O relato é construído de forma realista, com uma linguagem direta que ao mesmo tempo que naturaliza a violência e revela sua banalização, apresenta relações sexuais sem glamour nem erotismo, e relações pessoais violentas, sem afeto nem remorso. As referências à criança, pelo fato de ser autista, são muitas vezes impiedosas.
A relação entre pais e filhos é também outro ponto relevante, ao ser apresentada em seus conflitos, explicitando o quão distantes estão as famílias ideais, e como o ser humano pode revelar-se cruel, independentemente de sua condição maternal ou filial.
As reflexões das personagens sobre o instinto maternal, as expectativas e frustrações referentes à maternidade revelam os contrastes e contradições de sentimentos no que se refere a esse papel social, às vezes imposto socialmente, nem sempre facilmente aceito, nem muito menos com predomínio de final feliz. Enquanto a mãe de Daniel confessa que não quería ter filhos, a mãe de Leonel queria ter um filho a qualquer custo. Ambas vivem momentos de insatisfação com a maternidade e exteriorizam isso, muitas vezes com amargura:
Todo con Daniel era una contradicción: no querer tener hijos, pero buscar embarazarme. No querer estar embarazada, pero buscar en las acciones de Fran su aprobación (p. 75)
Si en el embarazo, triste, pedregoso y mohoso que había pasado ya sentía un arrepentimiento de tener útero y hormonas e instinto maternal, en la maternidad misma cada llanto de Daniel me rechinaba en el oído para constatarlo (p. 80).
Y es que cuidar también harta, ese estar al pendiente de Leonel y de sus exigencias y luego en los pedidos de las clientas y luego en la noche de las de Rafael. Nunca descansaba y casi todo me ponía de malas
A figura da mãe adotiva também faz sua aparição e suscita reflexões a partir de situações vividas, questionamentos e impasses que as ações que se desenrolam desencadeiam. A garota Nagore, que aparece desde o início e se imagina que se trata da filha da protagonista e irmã de Daniel, revela-se ser na verdade sobrinha de Fran, seu marido, de cujo cuidado o casal se incumbiu depois que a mãe da garota, irmã de Fran, foi assassinada pelo marido. Sua presença incomoda, em contraste com a ausência de Daniel, e a mãe postiça diz a ela, com todas as letras, embora depois se arrependa, que a desaparecida deveria ser ela. Mais adiante, ela também irá embora, aumentando o vazio da casa e da família que a abrigava.
Em contraste, as figuras masculinas revelam seu lado mais sombrio, nos relacionamentos amorosos, nas figuras paternais e filiais, postas à prova também quanto a seus papéis sociais: seu lugar na família, no mundo do trabalho, nas relações afetivas. Ambos os maridos não queriam ter filhos, embora mantivessem relações sexuais com suas mulheres, às vezes sem proteção, e saibam de seus desejos mais íntimos.
Com a maior parte da ação ocorrendo em uma pequena cidade do México, seu cotidiano, com relações de trabalho precárias, o trânsito pelos pequenos comércios e o registro das conversas do dia a dia, mostra a informalidade das relações pessoais, marcadas principalmente pelo registro da oralidade, a falta de cerimônia, os palavrões, as expressões regionais, a violência. Por outro lado, o silêncio é povoado pelo remoer dos pensamentos, por discussões imaginárias, pelas perguntas sem resposta e pela repetição de expressões que têm como objetivo mais do que acalmar os ânimos, acalmar a própria consciência: “Respira, respira, respira” – esta repetição pontua toda a narrativa da mãe de Daniel, às vezes entre parênteses, às vezes com outras palavras intercaladas.
Quanto ao título do romance, refere-se ao corpo feminino, que abriga a vida, mas também, contrariado com a maternidade, ou diante da perda do filho, é como uma “casa vazia”. As mães não têm nome, embora as outras personagens sim. São, como as “casas vazias”, preenchidas pela ausência.
Os maiores trunfos do livro são a densidade das personagens femininas em seus conflitos e a tensão narrativa, que se estrutura na angustia da personagem e no suspense que a acompanha do começo ao fim. A cada revelação sucede-se novo impasse, cuja solução a alternância de capítulos adia e sustenta até a última frase.
O romance também tem um grande potencial cinematográfico, que faz o leitor sentir-se espectador dos fatos apresentados. A cena inicial do livro, por exemplo, apresentada de chofre e sem maiores detalhes, mimetiza como o fato aconteceu e seu impacto sobre a protagonista:
Daniel desapareció tres meses, dos días, ocho horas después de su cumpleaños. Tenía tres años. Era mi hijo. La última vez que lo vi estaba entre el subibaja y la resbaladilla del parque al que lo llevaba por las tardes. No recuerdo más. O sí: estaba triste porque Vladimir me avisaba que se iba porque no quería abaratar todo. Abaratar todo, como cuando algo que vale mucho se vende por dos pesos. Ésa era yo cuando perdí a mi hijo, la que de vez en cuando, entre un conjunto de semanas y otro, se despedía de un amante esquivo que le ofrecía gangas sexuales como si fueran regalos porque él necesitaba aligerar su marcha. La compradora estafada. La estafa de madre. La que no vio (p. 15).
Mejor no hubiera llegado Leonel a nuestras vidas. Mejor se hubiera puesto a llorar muy flerte cuando debió hacerlo y no después, ya de camino. Yo era la mujer de la sombrilla roja que se subió al taxi cuando empezó a haber alboroto en el parque. Claro que lo abracé mientras lloraba, pero es que lloraba mucho; semanas después nos dijeron que tenía autismo y que a lo mejor por eso no le gustaba casi nada. Fue en ese momento que me arrepentí de querer ser madre (p. 39).
O fato de a narrativa não ser linear, mas se constituir por meio de avanços e recuos, revelando camadas, faz eco à complexidade das personalidades retratadas, e contribui para distender o tempo, cuja imprecisão está de acordo com a vida caótica das protagonistas, desordenada pela ausência/presença da criança desaparecida, que desencadeia todo o conjunto de ações.
Em síntese, uma mãe tem o filho desaparecido; outra mãe rouba a criança e a mãe desta mãe postiça faz a criança desaparecer. O final fica em aberto e o leitor dividirá a dúvida com as mães: onde estará Leonel/Daniel? Estará vivo? Ou como diz a personagem: “¿Por qué los llaman desaparecidos y no se atreven a llamarlos muertos? Porque los muertos somos los que los buscamos, ellos siempre, siempre seguirán vivos”(p. 138).
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