Resenhista: Livia Deorsola
1980, do madrilenho Juan Vilá (1972), jornalista e filósofo, é uma história real familiar, mas também coletiva. É narrada por ele, filho caçula de uma mulher precocemente viúva e mãe de três crianças na Madri pós-Franco dos anos 1970. O ano de 1980 é o da chegada em suas vidas do padrasto, o segundo pai, a quem o narrador – que adota o sobrenome catalão, o que se explica ao longo do relato – chama, sem restrição alguma, de papai. É esse homem, vindo de Barcelona, que mudará a vida de todos e, nas palavras do autor, o salvará.
Como toda história familiar, esta é feita de memórias. Como todo tipo de memória, as de Vilá são imprecisas, embora se pretendam exatas; são tendenciosas, ainda que busquem a verdade. Mas isso não é demérito, ao contrário: a espinha dorsal do livro está ancorada na fé naquilo que contamos sobre nós e os nossos, como se só dessa forma conseguíssemos expelir e elaborar com alguma dignidade e potência aquilo que – isto, sim, ninguém pode nos tirar – vivemos, vimos, testemunhamos. E sobretudo sentimos. O autor parece a todo momento anunciar que não pode haver argumento contrário ao que se sentiu.
Mas Vilá vai além. Ao tentar reconstruir a relação afetiva mais importante de sua vida, ao tentar dar sentido a ela através das palavras, e assim dar sentido à própria existência, o autor abre um abismo em que mal vislumbramos o fim: começa-se a roçar o papel que pessoas comuns assumiram – ou deixaram de assumir – em momentos históricos decisivos. Quanto isso forma ou deforma a imagem que temos delas? Como seguir amando-as, apesar de, frente a decisões morais, elas terem sucumbido?
Na história, como é natural, a infância tem papel determinante em toda a formação do protagonista, que avança e recua no tempo, mas que apresenta, como fundamento do que se narra, os anos de criança. Estamos diante de um personagem em primeira pessoa que sofre episódios pouco comuns ao período: é desatento, deprimido e
angustiado. Está aqui uma notável quebra com o ideal infantil, pois nos encontramos no campo da solidão, da desilusão precoce com a vida e do abandono afetivo. É nesse espaço vago que se fixa a figura do padrasto, que terá um papel emocional curativo para o narrador. Trata-se de um homem que, aos 62 anos, abandona sua vida em Barcelona para assumir a paixão pela mãe de Vilá e cuidar de seus três filhos pequenos. Para trás, ele deixa uma família de filhos adultos e ressentidos. A salvação do narrador antes mencionada está justificada no quadro familiar que se pinta, formado por um primeiro pai fraco e falecido, uma mãe ausente, vaidosa e manipuladora, que “seduz e suborna”; uma avó materna brutal, autoritária, la gran ogresa, orgulhosa do sofrimento e responsável pelas recordações mais terríveis da infância; uma tia-avó alcoólatra e a quem o narrador só consegue amar depois de vê-la se destruir quase por completo; e irmãos que caminham com ele ombro a ombro até um determinado ponto, para depois seguirem caminhos apartados.
A repentina morte do pai biológico num acidente de carro rompe a estabilidade familiar, mas, como se vê, não inaugura a infelicidade. Os problemas financeiros e emocionais só começam a ser sanados com a chegada do gran señor catalán, que se dedica a reunir os cacos de todos à sua volta, e consegue fazê-lo com louvor e carinho genuíno. Tanto, que é através dele que, por fim, o protagonista irá se reconciliar com a imagem do pai biológico, a qual restaura com o mesmo olhar nada complacente com que enxerga todos os outros personagens, inclusive a si mesmo, mas neste caso com um recurso a mais, que ele chama de “justiça”. “Hoje eu reivindico o meu pai, como uma questão de justiça e desagravo”, ele escreve. Seu primeiro pai sai então engrandecido, depois que camadas e camadas de pó jogado pela viúva – e por toda a tradição matriarcal de sua família – lhe são retiradas.
É, portanto, a partir da relação de carinho e devoção ao padrasto que o narrador desnuda os nós de amores desgastados e os põe sobre a mesa, numa abordagem psicanalítica que, ao menos tematicamente, o aproxima de mestres na narração das relações familiares – Natalia Ginzburg, Karl Ove Knausgård e mesmo Kafka, para citar alguns –, naquilo que há de mais intrínseco e banal em qualquer convivência familiar: nada de extraordinário precisa acontecer para que rancores, traumas e frustrações sejam o que de mais importante se estabeleça entre seus membros.
Nesse álbum familiar politicamente incorreto, eis que a construção afetiva de seu passado fica impossibilitada sem a construção social da figura do padrasto, numa elíptica guerra de narrativas em que, por fim, vence a que se afilia à sua memória e
sensações. Elaborar dores e frustrações pela escrita e pela investigação da memória – ainda que num exercício que sempre estará comprometido – se torna inviável sem a dimensão coletiva. E Vilá o faz com profundidade, coragem e veneno, através de um humor ácido e melancólico. O ponto alto do livro é justamente a sentença nada tranquilizadora de que podemos amar a quem, de alguma forma, não agiu como se esperava quando não estávamos vendo, trazendo consequências para o entorno expandido.
É desse modo que a partir do escrutínio da dimensão particular desse amor filial, o narrador adentra e expande a dimensão coletiva de uma Espanha em que ainda estão latentes as marcas deixadas pela Guerra Civil (1936-1939). “Papai”, alto, forte, robusto, sólido, amoroso, também era “católico e de direita, pequeno caçador de maçons ao lado de seu preceptor na infância e educado como membro da alta burguesia depois de ter sido expulso dela”, diz o protagonista sobre um pai tardio, a respeito de quem ele descobre muitas outras coisas nada honrosas, mas que lhe permitem uma perspectiva mais ampla, menos puritana e portanto centrada em circunstâncias históricas.
“É ou não é repugnante o amor?”, indaga o protagonista na medida em que contextualiza o sentimento, cujo “vínculo mais profundo e retorcido”, para ele, é a estrutura familiar. Mas a pergunta que paira sobre o livro, ainda que não dita, também é: Em última instância, seremos julgados – e eternizados – pelo amor que sentimos e ofertamos ou pela dor que causamo
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