Leitora: Gênese Andrade
Reflexões não idealizadas sobre a maternidade, os relacionamentos entre casais heterossexuais, a violência contra a mulher e as relações familiares são os principais temas de Casas vacías, o primeiro romance da mexicana residente em Madri, Brenda Navarro. É muito difícil sintetizá-lo sem fazer revelações que destroem o suspense que o caracteriza e é um de seus principais motores.
A peregrinação de Paula Quiñones, uma Fiscal da Fazenda, na investigação para localizar corpos de desaparecidos em decorrência da Guerra Civil Espanhola e da oposição ao franquismo constitui o enredo de Pequeñas mujeres rojas, de Marta Sanz.
Ao dirigir-se ao povoado de Azafrán em sua empreitada – coordenada pelo paleontólogo Braña-Alcañiz, e que contava também com a antropóloga Rosa –, ela acaba tornando-se mais uma vítima dos mesmos métodos aplicados àqueles que são objeto de sua pesquisa: uma norte misteriosa, lenta e com requintes de crueldade.
A história é narrada por sua amiga Luz e conta também com a voz narrativa de algumas vítimas assassinadas.
Na primeira parte, o que é apresentado se baseia nas cartas que Paula envia a Luz, nas quais conta detalhadamente seu cotidiano e revisita o passado. As duas amigas ficam ainda mais próximas quando o marido de Paula a abandona para envolver-se com o filho de Luz em uma relação amorosa. Arturo Zarco, então ex-marido, é o interlocutor da narrativa, com a qual se busca esclarecer fatos, tentar entendê-los e de alguma maneira fazer justiça a essa vítima e outras tantas, cujas semelhanças quanto ao destino não são mera coincidência.
Ao chegar ao povoado, ela se hospeda em um hotelzinho que pertence a uma família que é proprietária de praticamente todo o território. Seu patriarca chama-se, ironicamente, Jesús e é no dia em que se comemora seu centenário que a história desse clã começa a revelar-se diante de seus olhos. O neto, chamado, também ironicamente, David, será seu amante e talvez também seu algoz. Os três filhos de Jesús – cuja mulher, já falecida, chamava-se Virginia, chamada pelo povo de doña Virgen (completando a ‘Sagrada Família’ infame) –, as respectivas esposas de dois deles e o terceiro, mais o neto, constituem, aos olhos de Paula, um presépio às avessas, augúrio de morte, mais que de vida, ou do inferno, como o próprio nome da cidade preconiza em seu trocadilho: Azafrán/Azufrón – em português, Açafrão/Enxofrão, com a perda do jogo de palavras –, “el topónimo degradado de exquisita especia a diabólico elemento químico” (p. 26).
À medida que a história da família se revela, o cenário vai ficando mais tenebroso. Na segunda parte, o desaparecimento de Paula, e portanto a suspensão da conversa epistolar, abre espaço para que a amiga Luz (o nome não é irrelevante) comece suas investigações para descobrir seu já previsível destino. A história da família de Jesús Beato revela-se um intrincado circo de horrores, com direito a assassinatos, incesto e relações mal resolvidas; tem seu lado mais abjeto na construção do patrimônio familiar sobre cemitérios clandestinos de corpos de vítimas do regime franquista, vítimas da guerra civil – pessoas que foram delatadas pelo patriarca, perseguidas e executadas, enquanto ele se apossava de seus bens, de suas terras e acompanhava as execuções:
Jesús Beato siempre traía apuntados en su cuaderno los motivos de condenación: morder la hostia que era el cuerpo de Cristo, conspirar, promover reuniones clandestinas, ser un fornicador o una puta, dar dinero a los rojos, pronunciar un discurso, esconder una pistola, ocultar víveres. Después de cada saca y cada fusilamiento anotaba los beneficios: otro pinar, una tienda, un solar vacío, una casona. Jesús Beato acompañaba a los ejecutores, [...](p. 202).
A disputa pelas terras entre os filhos de Jesús Beato levará ao assassinato de Samuel, o filho do meio – com a cumplicidade da esposa, do irmão mais velho e da cunhada – devido ao fato de querer vender um terreno sem anuência dos demais, e também por sua descoberta do caderno de anotações de Jesús, que desvenda seu passado tenebroso, e é entregue dissimuladamente a Paula. A descoberta transforma os descobridores em vítimas, assassinados sem piedade.
Na terceira parte, são esclarecidas e detalhadas as circunstâncias da morte de Paula e se tenta desvendar o paradeiro de David; sobre este último, os dados não são conclusivos. Luz vai até Azafrán e faz uma longa pesquisa para descobrir o que aconteceu com Paula, tem acesso aos autos do processo, entrevista as assassinas, seus familiares, os colegas de equipe de Paula e preenche as lacunas da história com suas próprias conclusões dos fatos e sua imaginação.
O trecho final, mais metalinguístico e explicativo, talvez pareça a alguns leitores desnecessário, pois o final em aberto sempre enriquece as obras. O excesso de detalhes sobre tortura e morte – levando ao extremo a ‘banalidade do mal’ – pode chocar até mesmo os leitores afeitos a esse tipo de relato. O humor negro, as tiradas inteligentes, a ironia fina amenizam um pouco isso e principalmente o olhar da própria personagem Paula e de sua amiga Luz sobre a deformação da primeira em decorrência da poliomielite. Daí vem sua baixa estatura que inspira o título do livro: Pequeñas mujeres rojas.
A outra ‘mulher pequena’, que também recebe esse epíteto, é Julia. Ela conheceu Jesús ainda criança, espantava-se com seus instrumentos de barbeiro, inteirou-se de sua faceta de delator e cúmplice de assassinatos indevidamente, às escondidas. Depois de sair da cidade e ir para Madri, sem que se saiba de que vivia, reencontra-o já adulta, terá uma filha com ele, a qual irá se casar com Samuel, segundo filho de Jesús. Assim, configura-se o incesto e essa sua filha/nora, Analía – que irá dever-lhe favor eterno por ele ter abrigado sua mãe, louca, na velhice – será sua cuidadora e confidente, passando de protegida a protetora. A pequena Julia percorre a história de forma onipresente, e no final sua figura é aproximada da de Paula, pela personalidade aparentemente frágil e indefesa, mas na verdade obstinada, ambas vítimas, por razões diferentes, da mesma família, ao mesmo tempo que se impõem por suas atitudes, incomodando aqueles que as cercam.
O caráter de denúncia da narrativa convive com um rico intertexto de obras literárias, cinematográficas e outras referências artísticas – para citar algumas: Pedro Páramo, O fantasma de Canterville, Alice no País das Maravilhas, Alfred Hitchcock, Simone Signoret, Francis Bacon etc. Há ainda um flerte com o discurso das redes sociais, que domina o século XXI, como a repetição irônica da expressão “Dame un like”.
O perfume do jardim não encobre o cheiro de sangue que empesteia a cidade, cujo cotidiano gira em torno do abate de animais para consumo. A lida diária de Analía e de sua prima María com vísceras e despedaçamento de carne e ossos de animais é mais uma metáfora de tantos corpos dissecados por sua própria família e por outros assassinos, por questões políticas e ideológicas, não só durante a ditadura franquista, como o próprio romance esclarece.
A história é intercalada por trechos que se valem da estratégia narrativa de Juan Rulfo, em Pedro Páramo, evocado também em uma epígrafe. Ouvimos as vozes de mortos contando sua história, cujos corpos estavam na fossa situada sob o jardim do hotel que abrigou Paula – então desconhecida para ela, ali estavam os mortos reclamados de paradeiro ignorado.
Antes da primeira parte, uma espécie de prefácio, com o título “Con nuestros tirachinas (Lea despacio)”, informa: “Nosotros somos los niños perdidos y las mujeres muertas: puede que Paula nos ayude a crecer. Crecer es saber cómo te llamas porque lo dice la losa que te han echado encima” (p. 14). São eles mesmos que contam suas histórias, esclarecem como chegaram até ali e tecem considerações sobre o que os assalta, sobre a história que acompanhamos, da qual são também espectadores.
Novamente, antes da segunda parte, temos as vozes dos mortos, sob o título “Asesinos que ganan (Lea despacio)”:
Somos gente a la que le tocó estar donde no había decidido, pero también éramos personas que tomaron decisiones: concejales y alcaldes republicanos, las chicas y los chicos que cantábamos «La Internacional» sabiendo muy, muy bien lo que nos jugábamos, los ausentes de misa. Y ese estar y ese ser y ese cántico nos hacían humanos, incluso demasiado humanos. Y valientes. Que nadie se olvide porque esas y la avaricia son las razones por las que nos mataron o, al menos, las razones que hicieron buenas, justas, necesarias nuestras muertes durante elgolpe, la guerra y los cuarenta años de paz (p. 153).
É deles a voz narrativa em toda a segunda parte e no segmento final, “Monolito Blues (Lea despacio)”. Além de aludir à memória coletiva da guerra, esses episódios remetem diretamente à localização – que a autora aponta nos “Agradecimientos” – do cemitério clandestino de Milagros, em Burgos, em 2009, no qual foram encontrados 45 corpos de militantes de esquerda, sindicalistas e funcionários públicos de Aranda del Duero.
A violência sobre o corpo feminino, o lugar das mulheres na familia e na história espanhola, a escrita feminina são também temas centrais, como o título do romance anuncia.
Ao unir ficção, política, memória, história, relato epistolar, suspense e uma imensa quantidade de referências literárias, cinematográficas e metalinguísticas, este longo romance revela o grande potencial criativo da autora e fornece material riquíssimo para quem queira debruçar-se sobre as pistas que cada referência constitui, multiplicando interpretações e reflexões sobre a história da Guerra Civil Espanhola e seus desdobramentos.
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