Nascido em Madrid, em 1963, Santiago López-Pavillard realizou estudos em História, Jornalismo e Antropologia Social e Cultural, área na qual se especializou nas práticas xamânicas com uso da ayahuasca. Em 2015 obteve o título de Doutor na Universidade Complutense de Madrid com a Tese La vida como proceso de sanación. Prácticas chamánicas del alto Amazonas en torno a la ayahuasca en España, de onde se origina o presente libro. É a coroação de mais de uma década de estudos de campo e profunda discussão teórica tratando de conciliar as práticas xamânicas com o pensamento antropológico. Os trabalhos de campo foram desenvolvidos desde 2006, principalmente na Espanha e no Peru, e mais recentemente no Equador e no Brasil.
O livro está estruturado em oito capítulos e seu objetivo principal, como explicita seu autor, de modo bastante didático já no prólogo, é oferecer uma compreensão contrastada da atividade xamânica, seus fundamentos e finalidades.
O primeiro capítulo trata das condições do antropólogo no trabalho de campo, que o levam a optar pelo que ele chama de método da participação radical. Aplicado ao estudo das práticas xamânicas, esse método implica numa crítica profunda à construção da realidade no ocidente e ao modo como se constrói o conhecimento. A fundamentação teórica dessa metodologia, centralizada nas viradas ontológica e decolonial, é apresentada e discutida no capítulo 2.
Os capítulos 3 e 4 fazem uma introdução etnográfica. O capítulo 3 trata do contexto histórico e geográfico em que surgem essas práticas xamânicas usuais na Espanha e o capítulo 4 está centralizado nos xamãs com os quais o autor trabalha. O núcleo do trabalho, que traz a fundamentação etnográfica, a partir da qual se desenvolvem metodologia, marco teórico e análise, está no capítulo 5, dedicado às cerimônias da ayahuasca na Espanha, e no capítulo 6, dedicado ao uso xamânico do tabaco em Iquitos, no Peru.
A análise da etnografia, à luz dos capítulos teóricos, aparece nos capítulos 7 e 8. O capítulo 7 se dedica à interpretação e análise da cosmovisão dos xamãs que participaram da pesquisa. Finalmente, o capítulo 8, que tem o significativo título de “Do ‘velho’ animismo à ‘nova’ espiritualidade”, analisa a eficácia terapêutica das cerimônias de ayahuasca. O pesquisador apresenta, então, uma proposta de conclusão no conjunto das práticas que podem ser englobadas sob várias denominações: Nova Era, Medicinas Alternativas e Complementares e Novos Movimentos Religiosos.
Os processos que se ativam sob o efeito da ayahuasca podem ser descritos em seu conjunto como um momento de ruptura com tudo que é conhecido e apresentam uma nova reorganização do mundo. Ou seja, o participante se empodera em sua própria vida e começa timidamente a tomar as rédeas de si mesmo. Trata-se de uma visão holística do mundo que o leva a uma maior consciência ecológica e à necessidade de viver em harmonia com o meio ambiente.
Essa união e interconexão holística aparecem relacionadas às vertentes místicas das grandes religiões, em busca de um maior bem estar e uma compreensão mais ajustada com a noção de cura não como mera cura física, mas como uma cura espiritual. Trata-se de um processo vital no qual o participante vai descobrindo paulatinamente a conexão que existe entre todas as coisas; a conexão entre ele e as demais pessoas, começando por sua família; uma conexão, enfim, entre o participante e o mundo que o rodeia.
O volume, que segue um rigoroso formato acadêmico, conta ainda com um glossário em que se definem os principais conceitos utilizados ao longo do trabalho, além de uma acurada Bibliografia, com quase meio milhar de títulos, em inglês, espanhol e português. Muitos desses trabalhos foram produzidos na academia brasileira e tratam dos rituais do Santo Daime, variante brasileira da ayahuasca.
Constam da Bibliografia mais de quarenta títulos brasileiros: trabalhos acadêmicos, artigos, livros e capítulos de livros. Nesse conjunto de autores, merecem destaque o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional, com sete trabalhos e a antropóloga Beatriz Caiuby Labate, com 12 trabalhos. Labate é uma das fundadoras do NEIP, Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos, criado em 2001, que reúne pesquisadores de vários países, entre os quais Santiago López-Pavillard.
Aliás, a presença brasileira ao longo das experiências do autor com a ayahuasca ocorre desde o princípio, uma vez que ele foi introduzido no ritual pelo brasileiro Dácio Mingrone (1959-2000), em 1993. Dácio, formado na comunidade fundada pelo padrinho Sebastião Mota de Melo, na Colônia dos Cinco Mil, nas proximidades de Rio, Branco, no Acre, foi um dos pioneiros do Santo Daime na Espanha, tendo iniciado os rituais em 1988.
O libro oferece, enfim, uma aproximação a uma antropologia na qual se unem a descrição etnográfica, o debate entre conceitos e métodos e a reflexão sobre a prática etnográfica e seus efeitos no pesquisador, que abandona o gravador e passa a usar as maracas, como consta no título de um dos capítulos. Tal fato permite desenvolver uma nova conceitualização do xamã e de sua prática no uso cerimonial das plantas mestras, como a ayahuasca e o tabaco. A partir destes parâmetros constrói-se uma crítica dos paradigmas da antropologia social e cultural, na qual se introduz também um debate sobre a natureza e o alcance do próprio conhecimento científico.
O autor usa o termo xamã como uma categoria analítica de caráter transcultural para referir-se àquelas pessoas que tem a capacidade de interagir ou mediar o mundo dos “espíritos”, “forças” ou “energias”. Enfim, o xamã seria um intermediário entre o mundo sobrenatural e os humanos. Para esses xamãs, a natureza do ser humano é espiritual ou energética e a cura é um longo processo de conscientização dessa natureza ao longo de sucessivas cerimônias de ayahuasca.
Para os participantes dessas sessões, a cura, em última instância, implicaria em ampliar sua concepção ontológica de realidade. Humanos e não humanos (animais e plantas) compartilham propriedades físico-químicas comuns. Nas cerimônias, os participantes adquirem uma cosmovisão animista da realidade: reconhecem em primeiro lugar uma condição espiritual e energética em si mesmos; em segundo lugar, uma continuidade entre humanos e não humanos. Os xamãs do alto Amazonas com os quais o autor trabalha atuam racionalmente. Dirigem as cerimônias de ayahuasca com o objetivo declarado de curar os participantes e deve existir uma congruência entre o que fazem e os fins que pretendem alcançar.
O livro, ademais, apresenta um aspecto complexo de nossa sociedade que é a coexistência de diversas racionalidades que obedecem a diferentes concepções de realidade. Para isso é necessário distinguir com clareza o conjunto de noções, como saúde/cura, religião/espiritualidade ou crenças religiosas versus conhecimento espiritual, a partir das quais deve-se tratar de entender como e por quê ocorre uma progressiva introdução de conceitos animistas na sociedade ocidental.
Pelo exposto, consideramos o livro em questão, merecedor de ser divulgado no Brasil. Seja pelo rigor científico, que coloca em xeque o próprio conceito de ciência, no mundo ocidental, e que retira o tema da ayahuasca das seções de autoajuda e religião, onde proliferam títulos pouco sérios cientificamente. Seja pelas relações que o tema em si mantém historicamente com a cultura brasileira.
Antônio R. Esteves, junho de 2021.
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