Leitor: Rodrigo Petronio
A obra é de definição extremamente difícil. Composta de 16 capítulos, é uma literatura híbrida, misto de relato, autobiografia, crônica de viagem, diários, etnografia, ensaio e reescrita de lendas. O autor utiliza o termo transtextualidade. Este termo descreve bem esse tipo de escrita que incorpora escritores e obras ocidentais da mesma forma que dialoga, cita e reescreve narrativas e mitos locais.
O título do livro remete a uma nota introdutória: “a declaração de uma ausência”. Baseado no eminente linguista Émile Benveniste, estudioso da protolíngua indo-europeia, Crusat enfatiza que todas as línguas e gramáticas partem de uma localidade fática (mundana) do eu e do tu. Entretanto, a terceira pessoa, o ele/a-eles/as, seria uma abstração. Não se refere a ninguém, é uma “ausência de identidade constitutiva”. Trata-se de algo “que está ausente” (al- ya’ibu, em árabe).
Crusat parte dessa ausência ontológica e a reverte em termos positivos. Essa ausência abre espaço para apresentar o mundo e os outros a partir de múltiplas perspectivas. Busca nos berberes uma espécie de alteridade radical e essencial. Busca registrar essa etnia que povoou a África do Norte desde o Saara até o Mediterrânea, e cuja origem foi apagada e perdida, talvez para sempre. O vazio deixa de designar um falta e se converte na potência do imaginário e na abertura de mundos que emergem dessa que é uma das culturas mais marginalizados e apagadas do mundo: a cultura berbere.
A obra foi escrita entre janeiro e outubro de 2015 (ano 2965 segundo o calendário amasigh), período em que o escritor residiu em algumas cidades berberes do Marrocos, e foi concluída em Agadir. A cidade de Agadir, em língua berbere, significa celeiro, mais especificamente um celeiro coletivo fortificado. Os igudar (plural de agadir) são uma “antiga construção de pedra ou de carvalho que aloja a colheita de todo grupo, da tribo, da parte ou do clã, e ao qual é proibido o acesso de estrangeiros”.
O livro trata portanto das experiências de viagem do autor e, mais do que isso, propõe fazer um misto de arqueologia e de homenagem à cultura e à etnia berberes. Nessa literatura de fronteira, o nomadismo do autor se identifica com o nomadismo berbere que se definem a si mesmos como imasighen (homens livres), plural de amasigh (berbere).
Crusat nos informa sobre esta cultura composta de várias línguas (tamazight) e o seu interessante alfabeto (tifinagh) é baseado em um complexo grafismo cuja descrição nos aproxima dos labirintos e das caligrafias oníricas de Borges. Um dos capítulos do livro explora a cidade de Agadir, cidade fundada pelos portugueses em 1500 com o nome de Santa Cruz de Cabo Aguer, onde Crusat residiu durante um período e que foi objeto de suas impressões. Narra também a viagem do autor à cidade próxima de Tarundant.
Uma das peculiaridades da obra é como Crusat mescla à narrativa fotografias de sua autoria. Esse recurso narrativo é inspirado em W. G. Sebald, autor cuja obra Crusat se especializou e dedicou um livro. Esse mecanismo sebaldiano de cruzamentos entre texto e imagem e entre ficção e vida confere uma estranheza interessante à obra, pois ao mesmo tempo que sabemos que tudo pode ser ficção, acompanhamos a narração como se fosse um texto documental e testemunhal. Nesse sentido, conforme define Crusat, a literatura seria um “jogo de espelhos” capaz de prismar e multiplicar a complexidade e a diversidade do real.
Um ponto interessante é o capítulo dedicado ao Quixote. O narrador desenvolve o conceito de biombo, uma tênues e ilusória separação entre literatura e vida, ficção e realidade. Haveria uma “linha difusa entre a realidade e a ficção”, como os biombos da cultura japonesa. Para o narrador, a cada capítulo do Quixote, Cervantes produz biombos, ou seja, “uma sutil divisão dentro do espaço mental do leitor”. Segundo Vila-Matas, os biombos permitem divisões espaciais de uma mesma morada, mas são diferenças artificiais. Assim, Crusat relembra o belo ensaio do escritor e pensador japonês Tanizaki, sobre o jogo das sombras, para afirmar essas sutis “contornos da realidade”.
Quando os bombos são retirados, as sombras inseparáveis da realidade e da ficção se mesclam, diluindo “as paredes de papel de nossa imaginação”. Essas alternâncias entre realidade e ficção também são alternâncias entre diferentes realidades. Partindo de outro escritor japonês, Murakami, depois dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, o mundo atual é uma Realidade
A. Poderíamos estar vivendo em uma Realidade B, caso o evento de 11 de setembro de 2001 não tivesse ocorrido.
Assim, Crusat investiga as variantes da realidade e as oscilações entre realidade e ficção a partir desse mergulho na cultura e na vida dos imasighen. Outro ponto positivo da obra é a adaptação de lendas berberes (imasighen). Note-se em destaque a fábula intitulada O Oásis e os Dentes, versão de um conto teggargrent, língua tamazight falada em algumas regiões da Argélia.
Avaliação
Embora de definição extremamente difícil, Sujeto Elíptico é uma obra que explicita uma profunda compreensão das possibilidades e potencialidades da literatura. Mesmo com esse enquadramento conceitual, oscilando entre a etnografia e o ensaio, entre a notação erudita e o diário de viagem, a obra de Crusat pode interessar a leitores que gostem de confrontos com outras culturas e de relatos de viagem. Nesse sentido, ela pode ser muito bem adaptada e explorada por leituras brasileiros de diversos registros, interesses e formações.
Autor
Cristian Crusat (1983) é autor do ensaio W. G. Sebald en el corazón de Europa (Wunderkammer, 2020), do romance Europa Automatiek (Sigilo, 2019), de uma obra que se define como um artefato fronteiriço, Sujeto Elíptico (Pre- Textos, 2019), da monografia Vidas de vidas (Páginas de Espuma, 2015) e dos livros de relatos Solitario empeño (Pre-Textos, 2015), Breve teoría del viaje y el desierto (Pre-Textos, 2011), Tranquilos en tiempo de guerra (Pre-Textos, 2010) y Estatuas (Pre-Textos, 2006). Recebeu, dentre outros, o Premio Tigre Juan de Narrativa (2019), a Bolsa Leonardo (2017), o Prêmio Málaga de Ensayo (2014) e o European Union Prize for Literature (2013). Seu trabalho tem sido reunido em antologias como Cuento español actual. 1992-2012 (Cátedra, 2014) e traduzido para o inglês, o francês, italiano, holandês, búlgaro, macedônio, turco, trecho, albanês, hebraio e croata. Editou, prefaciou e traduziu as narrativas e ensaios de Marcel Schwob sob o título El deseo de lo único. Teoría de la ficción (Páginas de Espuma, 2012). Publica artigos, resenhas e traduções em revistas como Hispania (EEUU), Hispanic Research Journal (Reino Unido), Revista de Occidente, Cuadernos Hispanoamericanos, Das Magazin o Punto de partida.
Doutor em Literatura Comparada pela Universidade de Amsterdam, exerceu docência e investigação em universidades na Espanha, França, Países Baixos, Marrocos e Estados Unidos.
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