Fantasias no ar
Sonho, fantasia e magia em linguagem simples, associados a belas imagens coloridas – eis uma bela síntese de um livro infantil. Mas quando tudo isso amplia a reflexão para o papel do professor e do educador, ao transformar em personagens figuras essenciais, como o autor de Gramática da fantasia, Gianni Rodari, e escritores diversos, a afirmação de que um bom livro infantil agrada ainda mais aos adultos se impõe vigorosamente.
A primeira narrativa, ou chave dos sonhos, que este livro enfeixa, intitulada “La ventana de Rodari”, constitui uma espécie de moldura que envolve e espelha a reflexão sobre a fantasia e sua importância para a infância e para a vida inteira dos seres humanos. O escritor italiano visita a escola de um povoado em Úmbria. Na falta de uma lousa, desenha no ar uma janela imaginária, durante sua apresentação. Terminado o evento, a garota Chiara, encantada com a janela, leva-a consigo, para sua casa. Só ela é capaz de vê-la e, em seu cotidiano de violência, devido às brigas de seus pais e às agressões, a janela invisível se torna um escape do mundo real, um refúgio e um consolo. A fantasia parece ganhar concretude ao alimentar o sonho de outra realidade possível e demonstrar a importância de dar asas à imaginação, em circunstâncias diversas do cotidiano.
Do desenho imaginário, passamos para o desenho que ganha autonomia, se transforma, salta das páginas do livro e troca de lugar nos contos de Tomi Ungerer, escritor e artista gráfico nascido em Estrasburgo, em torno do qual gira a segunda narrativa. Os intercâmbios ocorrem, inclusive, entre livros diferentes: uma coruja é substituída por um gato, e aquela ocupa um espelho antes vazio, flertando com as narrativas fantásticas. E os próprios livros se tornam objetos fantásticos, que encantam e surpreendem seus leitores. As descrições das ilustrações e suas mutações são preciosas, assim como da paisagem em que o personagem Ungerer se situa. Se no texto anterior predominavam ações, aqui predominam imagens. No final, ele também faz desenhos imaginários no ar, os quais ganham vida e povoam sua sala do mundo real/ ficcional:
Tomi Ungerer estaba dibujando en el aire, sin dejar de sonreír, con el cigarrillo humeante en los labios y el pincel entre los dedos. Las líneas precisas iban desentrañando figuras sorprendentes, formas, siluetas que, cuando estaban terminadas, echaban a volar por la habitación, como si estuvieran ejecutando una misteriosa danza.
[...] Llevaban el encargo de jugar, de sorprender, de transgredir, de asombrar, de desconcertar, de maravillar…, a todas las personas que se acercasen a su obra.
Esse trecho poderia também legendar as ilustrações de Daniel Pintor, que embelezam o livro e dialogam perfeitamente com os textos.
É em torno da escritora sueca Astrid Lindgren e seu personagem Pippi que gira o terceiro conto. Já idosa e tendo perdido a visão, ela é convocada a participar de causas sociais, humanitárias, ecológicas, graças à popularidade e respeito alcançado com sua obra literária e por sua personalidade combativa. Essa narrativa contempla ainda a atemporal questão das fronteiras e dos refugiados, quando um grupo, inspirado por um de seus personagens, pede ajuda à escritora para permanecer em seu país: “las fronteras solo son líneas absurdas e invisibles que se han creado para separarnos a unos de otros. Hemos atravesado muchas de essas líneas invisibles hasta llegar aquí”.
Considerando que as narrativas giram em torno de escritores de origens diversas, esse trecho ganha sentido mais amplo, na medida em que as obras cruzam fronteiras nacionais, assim como as narrativas também dialogam entre si e encantam públicos de todo o mundo.
“El baúl de Juan Farias” transforma em personagem o escritor espanhol, que, como alguém desprendido, que não valoriza bens materiais, reúne tudo o que possui em um baú, elementos de imenso valor afetivo, mas não monetário. Ele se defronta com Don Alberto Abarbado, o homem mais rico da região, que, debilitado e à beira da morte, não se cansa de ostentar. Eles haviam sido colegas de escola e se reencontram depois de longo tempo. A história tem seu final em aberto, quando Alberto se surpreende com o desprendimento do escritor que só leva “recordações e sonhos”, e a última cena se constitui em sua observação do mar, no qual Juan flutua em seu baú e vai se afastando. Quem se vai?
Essas narrativas constituem outra maneira de esboçar biografias, ao fazer com que a obra dos biografados interpenetre suas vidas com sutileza e magia. Escritos sobre escritores, livros como personagens... Constituem também uma homenagem.
Mas “Los vampiros y Road Dahl”, que traz o escritor britânico em torno de escritos e personagens, ao abordar a sexualidade, o desejo e os vampiros, destoa do conjunto, pois envolve questões não apropriadas para faixas etárias mais baixas, restringindo a indicação da obra.
“La lata de conservas de Christine” e “La moto de Gloria Fuertes” trazem como personagens crianças em situação de vulnerabilidade social, que não perderam a ternura, nem a capacidade de amar e de sonhar.
No primeiro, aos olhos de Maximilien, o ratinho Konrad se humaniza e se torna sua família. Christine, diante do inusitado da situação, se questiona sobre o sentido da família, do ser humano e termina por compreender a flexibilidade e alcance de alguns conceitos, para além do convencional, movida pela empatia e o novo sentido que a vida ganha a partir daí: “¿por qué una lata de conservas no puede ser un hogar?, ¿por qué un joven y un ratón no pueden formar una familia?”.
O segundo constitui um intertexto com os contos de fadas O pequeno polegar e João e Maria. Uma família pobre de Madri, formada por um casal e sete filhos, vive em um bairro pobre, situada nos fundos de residências com vizinhos generosos. Gloria Fuertes premiava as crianças que devolviam suas roupas que caíam do varal com poemas e histórias. Uma dessas histórias motiva as crianças a ajudarem os pais financeiramente e, para não se perder quando saem do bairro, espalham pedrinhas pelo caminho. Após viver uma aventura, conseguem presentear Gloria com uma moto e ajudá-la a realizar seu sonho, de virar poeta. E é com suas histórias e poemas, lidos e transmitidos pelo rádio, que eles serão alfabetizados.
O final feliz é que as verdadeiras chaves são as palavras e a imaginação, que conduzem aos sonhos, mas também podem ajudar a transformar a realidade, tanto dos personagens como dos leitores do livro que temos em mãos.
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