Leitor: Antonio R. Esteves
El fantasma de Gaudí é uma HQ criada pelo roteirista Juan Torres, el Torres, e ilustrada pelo desenhista Jesús Alonso Iglesias. Publicada originalmente em 2015 foi laureada com vários prêmios. O resumo, que aparece na terceira capa do livro, também é usado em outros materiais de divulgação: “Quando Antonia, uma simples caixa de supermercado, salva um idoso de ser atropelado, desencadeia uma série de terríveis eventos. Nos principais monumentos construídos por Gaudí aparecem cadáveres terrivelmente mutilados. A polícia se vê em um beco sem saída. E Antonia teima em afirmar que viu o fantasma de Gaudí”.
A história, desenhada de modo brilhante por Alonso Iglesias, inspirando-se na monumental obra de Antoni Gaudí, tem os elementos básicos de um thriller: uma história policial em que misteriosos assassinatos devem ser elucidados. Ao mesmo tempo há a presença do sobrenatural: o fantasma de Gaudí passeia pela narrativa. A pergunta que paira no ar, até o final da história, mesmo depois dos crimes desvendados, é se esse fantasma faz parte do plano real da narrativa ou se trata-se de uma mera fantasia de Antonia.
Fantasma ou ilusão de Antonia (a hesitação faz parte do gênero fantástico), o personagem central da história é Gaudí, sua obra e os espaços em que viveu. Ele é jogado na narrativa logo no início, no momento em que Antonia salva o idoso do atropelamento, que ocorre no mesmo lugar em que o arquiteto foi atingido por um bonde no dia 07 de junho de 1926, levando-o à morte três dias depois.
As duas primeiras páginas da narrativa, sem nenhuma indicação especial, funcionam como introdução e sumário da história. Graficamente há uma espécie de vista aérea do centro de Barcelona. Em seguida aparecem detalhes de sete obras do arquiteto catalão: a Casa Vicens, a Casa Calvet, o Palácio Güell, a Casa Batlló, a Pedreira, o Parque Güell e a Sagrada Família. Diz o assassino, pouco antes de morrer (e me desculpem pelo spoiler): “Se unimos com linhas a localização desses lugares, forma-se a constelação da Ursa Maior, as Sete Estrelas do Apocalipse.” (p. 95). Acompanham esses desenhos palavras que, só no final da história, sabemos que são do assassino. Falam de um esquema, uma espécie de caminho que leva a uma mensagem. E essa mensagem ainda está aí. Apesar de estar coberta por cartazes, anúncios, turistas e merda luminosa, ela ainda está aí. Mas está quebrada, fragmentada e sem forma. Fragmentada como o personagem que fala.
O último desenho da página 10 é uma espécie de sumário da história. Em cima de um mosaico, um livro sobre Gaudí e um plano de Barcelona com vários pontos interligados, aparece uma mão ensanguentada que derrama manchas de sangue sobre todo o material. Esse desenho é uma antecipação do final do romance, quando na página 95, o assassino, já ferido, entrega para Antonia um mapa da cidade, ensanguentado, indicando a linha que forma a Ursa Maior. Evidentemente esta antecipação só será notada quando depois de ler toda a história, o leitor volta ao princípio para comprovar, como ocorre nos romances policiais.
A história está dividida em quatro capítulos, cada um dos quais é dedicado aos quatro assassinatos principais, associados aos sete lugares já referidos. O primeiro corpo aparece mutilado na Casa Vicens. Morto em outro lugar, foi arrastado até ali sem que ninguém visse. Entram na história, então, os três personagens principais decididos a elucidar o misterioso crime: o detetive Calvo, que é realmente calvo e a juíza Montaner, por parte da polícia. Paralelamente aparece Antonia, que depois do episódio do atropelamento também se decide a se aprofundar na obra de Gaudí e acaba estando presente em todas as cenas dos crimes.
No segundo capítulo, após o segundo assassinato, cujo cadáver vitimado pelo mesmo veneno, é jogado nos portões dos Pavilhões Güel, fica claro que os crimes estão associados às obras de Gaudí. Constata-se que o criminoso, ou criminosos, segue a ordem cronológica de construção das obras. O detetive conclui então que o modus operandi corresponde a um assassino organizado, com assassinatos premeditados, nada espontâneos, com consciência forense e com mensagens a serem decifradas.
Uma vez que os crimes estão relacionados à carga simbólica da obra de Gaudí, o detetive Calvo e a própria Antonia se dedicam a estudar a obra do arquiteto catalão na tentativa de prever os próximos crimes. Depois de uma série de eventos ocorridos nas já referidas sete obras do arquiteto, o assassino é descoberto. O desfecho ocorre, como não poderia deixar de ser, na obra principal de Gaudí, a Sagrada Família. Como costuma acontecer nas histórias policiais clássicas, ele não é preso. Calvo, que tinha conseguido prever onde ocorreria o próximo crime, não chega a tempo de evitar que Antonia fosse feita refém pelo assassino. No entanto, no labiríntico ambiente das torres neogóticas da igreja a ação é rápida e Antonia consegue escapar.
O desenho de Jesús Alonso Iglesias recria com sutileza o exótico ambiente criado por Antoni Gaudí (1852-1926) em suas obras geniais. O excesso de detalhes reproduzido pelo modernista em suas construções cria um ambiente onírico, onde se misturam desde o orientalismo das primeiras obras, como a Casa Vicens, construída entre 1883 e 1888, até proliferação do neogótico de sua última obra, a Igreja da Sagrada Família na qual ele trabalhou boa parte de sua vida (1883-1926), mas que ficou sem concluir. Desde então, as obras da igreja avançam em ritmo desigual, de acordo com os recursos materiais, com o término previsto para o centenário de sua morte, em 2026.
Artista multidisciplinar, Gaudí cuidava dos mínimos detalhes de cada obra. Ele próprio executava trabalhos de cerâmica, vitrais, ferro forjado e marcenaria. Uma de suas marcas pessoais é o trencadís (em catalão, “quebrado”), uma espécie de mosaico com base em fragmentos de cerâmica ou outros materiais que se juntam para cobrir uma superfície. Essa técnica tornou-se famosa na decoração dos jardins do Parque Güel ou na Casa Batlló, ambos cenário de crimes no romance.
Além da imitação de técnicas utilizadas por Gaudí, Alonso Iglesias se vale, na elaboração de seus desenhos ou na montagem da página, do trencadís, com um excelente efeito visual. O texto apresenta várias vezes a ideia da fragmentação como, por exemplo, na definição da personalidade multifacetada e instável do assassino que repete diversas vezes a palavra “quebrado”, para referir-se a si mesmo.
A leitura da HQ é rápida. Como thriller, policial e de suspense, mantém a atenção do leitor. Por sua linguagem gráfica, deleita. Funciona, além disso, como um ilustrado guia das principais obras de Gaudí, Patrimônio Mundial da Cultura, dispersas pela cidade de Barcelona. Livro imprescindível para o leitor brasileiro, especialmente aqueles interessados em arte.
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