Mares de tinta têm sido utilizados na discussão do controvertido papel de Maria Madalena no âmbito do cristianismo nos dois milênios que transcorreram entre sua pouco documentada existência histórica e nossos dias. As escassas referências registradas nos evangelhos canônicos a colocam como uma discípula que teria acompanhado os últimos momentos do Nazareno. Mesmo esses registros são contraditórios uma vez que se lhe atribui um papel ambíguo entre santa e prostituta, ao mesmo tempo que ela aparece misturada a outras Marias, como a de Betânia ou a própria mãe do Nazareno. Mais recentemente, evangelhos apócrifos de origem copta, ampliam sua participação da vida do Nazareno, chegando até mesmo a insinuar que ela teria sido sua esposa com a qual ele teria tido filhos. Amplia-se, assim, sua participação na vida do Mestre, além do tradicional financiamento a ela atribuído a suas ações.
Desse modo, sua história, sempre envolta em um manto de fumaça e mistério, acabou dando origem a mitos e narrativas nada passíveis de comprovação histórica e muito favoráveis a uma proliferação de relatos, ambiente fértil para a literatura. E no âmbito desse mito literário, El evangelio según María Magdalena, é uma nova versão dessa rica história, que nos chega pela ágil pluma da escritora, jornalista e agitadora cultural aragonesa, Cristina Fallarás, que veio à luz no início de 2021.
Partindo do princípio de que “quem maneja as palavras constrói”, o evangelho é um relato ágil, em linguagem elaborada, plena de poesia. Essas memórias de Madalena, não apenas meramente narrativas, são também reflexivas e filosóficas e se espraiam em cinquenta capítulos de menos de cinco páginas cada, cuja leitura é leve e agradável.
Tendo se recolhido em Éfeso em sua velhice, ela decide escrever sua versão da vida do Nazareno, especialmente os últimos anos de suas andanças e os misteriosos acontecimentos daquela célebre Páscoa, da qual ela também participou de modo ativo. Tal decisão advém, segundo ela, da necessidade de colocar um pouco de luz naquela história manipulada pela voz do patriarcado que acabou sendo imposta como memória absoluta.
A Maria que toma a palavra para recontar uma versão feminista dos evangelhos é uma mulher culta, filha de um próspero comerciante de molho de peixe da localidade de Magdala, às margens do Mar da Galileia, daí seu epônimo. Com a morte do pai, assassinado pelos radicais zelotes, ela completa sua educação em Roma. Herdando sua fortuna e seus negócios, ela mantém uma espécie de academia em sua casa, controlada pelas “doutoras”, mulheres sábias, encarregadas de cuidar da saúde das mulheres, salvando-as da violência machista comum naqueles tempos. Originalmente parteiras, essas conhecedoras do corpo feminino acabam se transformando numa espécie de irmandade curadora das sequelas da violência sexual e física sofrida pelas mulheres. Como mulheres, são invisíveis ao patriarcado, podendo então cultivar sua ciência sem ser notadas e perseguidas.
Em determinado momento ela se aproxima do Nazareno e coloca seus bens materiais à sua disposição, passando a protegê-lo. Seu relato apresenta interessantes versões, plausíveis e lógicas, para os “milagres” perpetuados pelos evangelistas, que necessitam dominar a carne, criar um sacrifício na cruz, a morte, para construir a ideia de uma existência melhor, mais digna, mesmo que milagrosa. Seria uma forma de manipular as multidões de despossuídos e desesperançados, encaminhando-os para uma saída mágica e milagrosa.
A recriação do evangelho perdido de Maria Madalena, complementada por outros documentos do Mar Morto, brota nas gretas dos textos sagrados que foram canonizados pela igreja ao longo dos séculos com o objetivo de manter o poder patriarcal e heteronormativo que sustenta há milênios a instituição do cristianismo como igreja universal. Assim, o evangelho de Madalena se propõe a descontruir essa sociedade misógina e violenta, com o objetivo de combater o patriarcado e a discriminação por ele instaurada.
Enfim, essa espécie de evangelho, sob a voz de Madalena, apresentado por Cristina Fallarás, se propõe a recuperar a voz que nos foi extirpada ao longo dos séculos. Sua mensagem de esperança é uma amostra de que podemos nos salvar das forças conservadoras dessa sociedade hipócrita que nos oprime.
Através de uma releitura a contrapelo dos textos canonizados, tão necessária nestes tempos de negacionismo, o romance de Fallarás aponta para a crença na explicação da ciência e do papel social da mulher, ao contrário de soluções mágicas e estrambólicas para problemas cuja solução é simples e visível a olho nu. Uma leitura necessária nestes tempos conturbados em que as trevas teimam em perpetuar seu ancestral domínio.
Antônio Roberto Esteves, junho de 2021.
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