Leitor: Miguel Del Castillo
A ideia do mal e suas manifestações físicas e psicológicas nas pessoas e na história da humanidade é o tema que atravessa todos os contos de La mala entraña (Baile del Sol, 2019), primorosa coletânea da escritora espanhola Elena Alonso Frayle (Bilbao, 1965).
Frayle é autora de contos e de romances, e nunca foi publicada no Brasil, embora tenha recebido diversos prêmios tanto na Espanha como no México, principais países onde sua obra está publicada -- como o Premio Sor Juana Inés de la Cruz por Llegados a este punto (2012).
O primeiro conto dá o título e o tom ao livro, ao abordar as origens do mal. Três amigos adolescentes fazem brincadeiras perversas que sempre parecem mais intensas que as de seus pares e, quando o líder deles age sozinho, assustando até os outros dois, eles se perguntam se aquele mal entranhado tem ou não uma causa: “Entender que o mal era como aquela doença que talvez corroesse o organismo de seu amigo, dolorosa e prejudicial, mas explicável de acordo com as leis da lógica que ordena o caos, lhes pareceu por um momento menos terrível do que aceitar que a perversidade carece de causas que a expliquem, que é exercida gratuita e aleatoriamente, sem origem ou objetivo, sem princípio ou final, como a essência da divindade”.
Na sequência, “Misericordia” é um conto sobre o insólito, sobre os mecanismos da culpa e os limites entre a boa ação e a perversão, protagonizado por uma mulher, casada e com um filho pequeno, cuja fantasia é fazer sexo com um jovem com deficiência intelectual. Em “Gente tan afín”, o mal se mostra insidioso, subjacente nos menores gestos que uma moça caroneira começa a observar no sujeito lacônico que aceitou levá-la consigo, saindo de um motel de beira de estrada.
A seguir há três contos que versam sobre como um mal do passado, transformado em amargura, vai impregnando pessoas e coisas, não deixando a vida florescer: a filha de terroristas, em “La buena hija”, que passa da incompreensão a uma vingança talvez inútil; a mulher que durante a guerra da Iugoslávia oferecia seu corpo aos soldados como forma de preservar a filha, então adolescente, em “La mujer promiscua” -- conto em que aparece também um viés metaliterário da autora, cujo questionamento sobre a esterilidade desse heroísmo se torna também uma pergunta sobre o suposto poder da literatura; os pacientes de uma psiquiatra e epigeneticista que demonstram medo diante de imagens de buracos, em “Tripofobia”, e os paralelos que ela traça ao constatar que todos são descendentes de sobreviventes do holocausto.
“La calle de Mary Quant” é outro texto sobre passado e memória, mas por outra ótica, pois explora como uma lembrança supostamente feliz pode alimentar uma ilusão e ajudar a suportar a trivialidade dos dias e, de repente, quando confrontada com o presente, amargar.
Os dois escritos que encerram a coletânea, “Amados hijos muertos” (sobre a apreensão de uma mulher que pega um voo para Nova York às pressas após algo de ruim acontecer com a filha) e “El ojo de Dios”, são quase imóveis em seus cenários e personagens, e demonstram a habilidade narrativa de Frayle, que, como nos outros, consegue sustentar a tensão até o final. No último, espécie de “O Aleph” de Borges ao inverso, uma menina de sete anos descobre que não existe mistério: que o círculo de luz que vira da banheira não era o olho divino, e sim apenas o reflexo do sol em seu novo relógio -- e que o melhor mistério eram as histórias que ela inventava para si.
Para além da questão do mal, emergem destes contos, quase todos sobre dramas nada supérfluos de uma classe média europeia, vozes femininas e masculinas muito bem construídas pela autora, que eximiamente evita qualquer maniqueísmo; pessoas de meia-idade, jovens e crianças com conflitos e desejos complexos e muitas vezes viscerais.
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