Mira a esa chica é o romance de estreia de Cristina Araújo Gámir (Madri, 1980), vencedor do XVIII Prêmio Tusquets Editores de 2022. Formada em letras inglesas pela Universidade Complutense de Madri, Cristina conquistou holofotes ao criar uma história dura e profunda sobre um estupro coletivo vivido por uma adolescente de 18 anos. O relato foi baseado em um caso real, ocorrido na cidade de Pamplona, capital de Navarra, na região autônoma do País Basco. O fato ocorreu em 2016 e ficou conhecido como “La manada de Pamplona”. A cidade é famosa por causa da tradicional Fiesta de San Fermín, uma celebração originalmente religiosa realizada em homenagem a São Firmino durante o mês de julho. A festa divide-se em dois momentos principais: primeiro, a corrida de touros pelas ruas da cidade; depois, a aglomeração dos participantes para o estouro de fogos, que modernamente se tornou o momento em que os celebrantes ingerem grande quantidade de álcool.
A dramática experiência vivida pela personagem Miriam Dougan e todo o furacão que dela advém reverberam uma ampla gama de questões que envolvem um ato brutal como esse, dando a ele a complexidade que de fato tem, de modo que conseguimos vislumbrar um crime de raízes profundas e extensas em termos morais, sociais e políticos.
Em suas 376 páginas, a trama não linear – as idas e vindas no tempo ajudam a intensificar o efeito tenso e dramático – adota uma alternância entre a segunda pessoa (centrada na intimidade da protagonista) e a terceira pessoa (centrada na perspectiva dos amigos, da mãe e dos quatro agressores) para descrever as características psicológicas dos personagens. A primeira fase do livro, que se arrasta até mais ou menos a primeira centena de páginas, pode despistar: num primeiro momento, tem-se a impressão de que Mira a esa chica é mais um livro clichê para garotas, em que são detalhadas as dificuldades amorosas de uma menina insegura, que sente um imenso desconforto com seu corpo fora dos padrões e que tem que enfrentar uma desleal concorrência com meninas magras e populares pelos sentimentos do bonitão da turma. Mas esse contexto é necessário para que o leitor compreenda a forma insalubre com que se dá a educação sentimental e sexual à qual estamos submetidas há séculos, com o agravante contemporâneo da presença das mídias socias, fator que catapulta o rebaixamento psíquico e a cultura do estupro a níveis nunca vistos.
Miriam é filha de uma mãe solo que trabalha o dia todo e portanto não consegue acompanhar de perto a vida da garota. A história se passa durante as férias de verão: Miriam vai à piscina – local em que os corpos expostos são o tempo todo alvo do escrutínio alheio –; encontra os melhores amigos e nutre uma paixão por Jordan, para quem ela é invisível, pois ele namora a bela e esbelta Paola. Com a autoestima em frangalhos, a protagonista tenta de todas as formas se inserir no grupo e conquistar o apreço dos rapazes; faz isso por meio de conversas altamente sexualizadas, em que sua pouca experiência real na questão contrasta com uma verborragia inconsequente. Na tentativa de ser aceita, ela vivencia as mais variadas pequenas violências misóginas e machistas; deixa-se ser alvo de bullying, de brincadeiras em que é constantemente humilhada e diante das quais finge indiferença e segurança, justificando e atenuando o comportamento dos companheiros.
Cansada de se sentir mal diante do grupo e de ser rejeitada por Jordan, Miriam é instigada pelas garotas populares a se aventurar nos aplicativos de relacionamento. É assim que conhece O Estudante, codinome do homem que a deixará encantada e que a arrastará para perigosos jogos sexuais cujo efeito inicial será fazê-la por fim se sentir desejada.
O caldo da tragédia está formado. Certa noite, um grupo de quatro homens, levados por O Estudante, a estupra. O acontecimento é narrado de forma intrincada e complexa; tão complexa que dará espaço para o questionamento cruel do entorno. Miriam ouve de todos – dos amigos à polícia, passando pela carnificina adotada pela imprensa – as já combalidas perguntas que teimam em deslegitimar a condição de vítima: “você mandou mensagens de cunho sexual?”, “incentivou a aproximação?”, “que roupa estava usando?”, “aceitou encontrar-se com ele a sós?”, “nada te pareceu estranho?”, “ingeriu álcool?”, “que tipo de fotos mandou a ele?”, “por que entrou no carro dele sozinha?”.
Com o processo legal, o pesadelo se torna muito maior. O que fazer logo após uma agressão sexual? Contar a alguém? Esconder? Quais as provas a serem reunidas? Depoimentos repetitivos e exaustivos, vacinas, testes de HIV, de sífilis e de gravidez ao longo de meses, exames, antidepressivos, sessões de terapia, sentimento de culpa, de negação... Esse é o calvário pelo qual a protagonista terá que passar, narrado de forma tal que leva o leitor sensível à indignação e ao questionamento necessário das estruturas patriarcais e suas consequências na vida de meninas e mulheres.
Durante a última centena de páginas, a autora descreve como a personagem vive as sequelas do trauma e joga luz nas distintas opiniões das personagens secundárias sobre o acontecimento. É necessário certo estômago para ler como Cristina faz funcionar a mente dos agressores, sua cumplicidade e a desumanização com que tratam a vítima: uma lupa crível dos mecanismos de masculinidade e do comportamento grupal.
Mira a esa chica apresenta altos e baixos. Tem alta voltagem narrativa, personagens bem construídos. Por outro lado, tem passagens por vezes longas demais e que poderiam ser enxugadas para um melhor desempenho ficcional. Mas certamente merece ser publicado e lido, por dois motivos: o tema é urgente e o tratamento dado a ele traz facetas nada simplificadoras das questões envolvidas.
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