Releituras do mito e do conceito da “mulher fatal”
Partindo de uma análise da pintura da conhecida cena bíblica Susana e os velhos, privilegiando a versão de autoria de Artemisia Gentileschi (1593-1653) – que traz uma representação da figura de Susana diferente da realizada por outros pintores ao longo da história da arte –, este livro se propõe a analisar o mito da mulher fatal a partir da perspectiva feminina. Os objetos de análise são obras literárias e cinematográficas dos séculos XIX e XX, em que a personagem feminina é celebrizada como objeto do desejo sexual masculino.
A reflexão tem como elemento central a análise detida da protagonista feminina do conto Carmen (1847) de Prosper Mérimée, do romance A mulher e o fantoche (1896) de Pierre Louÿs e do filme Esse obscuro objeto do desejo (1977) de Luis Buñuel – os dois últimos considerados releituras do primeiro. Nessa abordagem comparativa das três obras, a autora evidencia, com base em teorias psicanalíticas e na recepção das mesmas ao longo do tempo, a construção da figura feminina como vilã como algo naturalizado e misógino. Ressalta que não deve passar despercebido o fato de as obras serem de autoria masculina, mas também o recurso da confissão e o foco narrativo como decisivos para direcionar a recepção da versão apresentada como incontestável. O conto de Mérimée é analisado também em abordagem comparativa com “O coração delator” (1843), de Edgar Alan Poe.
Esse primeiro percurso encontra sua síntese neste trecho: “Fue necesario más de un siglo, el tiempo que separa a Carmen de Conchita y a Mérimée de Buñuel, para hacer saltar por los aires el mito de la mujer fatal mostrando a la amada como la funesta invención de un individuo
ensimismado y enajenado, para quien una simple contrariedad se convierte en tragedia universal” (p. 74).
Na análise das obras de Marcel Proust, A prisioneira (1923) e o “O final dos ciúmes”, última parte de Os prazeres e os dias (1896), é central a discussão sobre o ciúme, já anunciada no título do capítulo “La cárcel del deseo: Proust y los celos”.
Ao abordar Lolita (1955), de Vladimir Nabokov, Elisenda Julibert discute a questão do fetiche, definindo a obra como “una reivindicación de la fantasía amorosa masculina y, por lo tanto, un reconocimiento tácito de que el deseo de los hombres es irremediablemente fetichista” (p. 114), sem descuidar das diversas linhas interpretativas que marcaram sua recepção: uma obra corajosa e emancipadora, por apresentar o caráter transgressor do amor; um romance pornográfico e uma obra de denúncia da pederastia. Defende, acima de tudo, seu caráter crítico, trágico, satírico, irônico, ao retratar os excessos que explicitam a insensatez humana, na linha de Dom Quixote, Tristran Shandy e Bouvard e Pécuchet, sendo este último objeto de um capítulo também, que tem como subtítulo “una alegoría del deseo”.
Para Flaubert, segundo a autora, o mote é a impossibilidade de satisfazer o desejo, qualquer que seja o objeto, considerando-se inclusive que, para ele, qualquer objeto é adequado e inadequado ao mesmo tempo. E se para o autor francês a insatisfação decorre do fato de as personagens confundirem o objeto do desejo com a causa, a confusão é também uma forma de fetichismo.
A discussão sobre o filme de Alfred Hitchcock, Um corpo que cai (1958), traz elementos que reforçam a perspectiva de análise que estrutura a reflexão da autora: “la figura de la mujer fatal que la película alimenta a través del personaje de Madeleine no sería la representación de un determinado tipo de mujer, sino la de una peculiar fantasía masculina. Razón por la cual, también en este caso, la clave para entender la indudable fatalidad de la aventura de Ferguson tal vez no se encuentre en el objeto de deseo, sino en la singular forma de desear del protagonista, que desvelarían sus pesadillas” (p. 97).
A análise das obras – que inclui ainda o filme de Billy Wilder, Quanto mais quente melhor (1959) – é minuciosa e exaustiva, retoma a personagem de Mérimée em vários momentos, não perde de vista o contexto de produção, nem as questões sociais que envolvem a construção da figura da mulher fatal.
Nesse percurso, sua tese é que a alienação do objeto do desejo leva tanto à idealização da amada na literatura amorosa quanto à sua degradação no “subgênero” dos amores fatais – do qual se ocupa –, ao mesmo tempo que leva à interpretação dessas histórias como romances extraordinários – o que ela considera um equívoco – e não como narrativas de terror psicológico.
A bibliografia em que ela se apoia passa por Mario Praz, e principalmente Lacan e Freud, obras essenciais para o tema, que ela discute com propriedade e das quais às vezes também discorda com elegância e bons argumentos.
O título “Hombres fatales” explicita a mudança de perspectiva proposta para a abordagem do tema, como se destaca no epílogo: “trasladar a los lectores al lugar que han ocupado las mujeres y ofrecerles un súbito atisbo de la amarga impresión que produce pertenecer de antemano a una condición maldita” (p. 160). Propõe-se, assim, a “desenmascarar la falacia de atribuir al objeto deseable una fatalidad que sólo puede ser el resultado de una determinada forma de desear del sujeto” (p. 159).
Ao abordar um tema bastante instigante a partir de clássicos da literatura e do cinema, a obra é de interesse para o mercado brasileiro, e deve ser bem recebida pelo fato de se constituir em um texto agradável, que prende a atenção do leitor, com rigor e leveza ao mesmo tempo.
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