Leitora: Livia Deorsola
O portenho Roque Larraquy (Buenos Aires, 1975), roteirista de cinema e televisão, estreia na literatura com este romance estranho e perturbador, a começar pelo título. Comemadre é uma planta patagônica cuja seiva produz larvas microscópicas capazes de devorar qualquer ser (vivo, inclusive) em pouco tempo, até não restar nada. A partir dessa imagem macabra e que flerta com a necrofilia, o autor desenvolve duas histórias separadas por mais de cem anos no tempo, ambas narradas em primeira pessoa.
A primeira transcorre no ano de 1907, em um sanatório de Temperly, nos arredores de Buenos Aires. O doutor Quintava dirige uma equipe médica da qual faz parte a enfermeira Menéndez, por quem ele se apaixona, mesmo sem saber quase nada sobre ela. Aos poucos ele descobre que não é o único interessado. Envolvido por esse amor, ele se lança a uma competição sem limites precisos e, arrastado pelo desejo de transcendência e de poder, o médico se une a outros colegas sem escrúpulos num experimento cruel, que tem o objetivo de desvendar os mistérios que existem depois da morte. Baseado na ideia de que uma cabeça humana, separada de seu corpo, é capaz de permanecer viva e consciente por nove segundos, o grupo de cientistas investiga o que, afinal, acontece durante esses exíguos momentos. Para tanto, buscam suas cobaias entre os doentes terminais, muitas vezes atraídos pelos próprios médicos ao hospital com a falsa promessa de cura.
A segunda parte do livro faz um salto até 2009, quando um ambicioso e vaidoso artista multimídia revisa um livro que pretende contar sua biografia. Por meio desse recurso narrativo, o leitor fica sabendo que suas habilidades artísticas surgem muito cedo em sua vida, e que, na adolescência, ele sofrera com o excesso de peso, fazendo-o viver de forma isolada e solitária. Seus primeiros desenhos mostram um menino de duas cabeças, revelando uma propensão ao surrealismo e também à morbidez que se aprofunda cada vez mais com o passar dos anos, levando-o a inventar brinquedos compostos por um coro de cabeças. Pois esse garoto-prodígio convertido em artista célebre decide transformar o próprio corpo e de outras pessoas próximas em arte e mercadoria.
Outras criações suas incluem extremidades humanas como parte de instalações que se assemelham aos artefatos criados por Raymond Roussel (1877-1933), dono de extravagâncias das mais diversas. Autor de Impressões da África, que antecipou técnicas de colagem, Roussel também criou encenações teatrais que encantaram os artistas surrealistas da época.
Aos poucos vamos nos dando conta das conexões que há entre as duas histórias, ainda que elas sejam apresentadas de forma independente num primeiro momento. Ambas são narradas por protagonistas perturbados e arrogantes, que não veem limites para suas ações e investem na crueldade para alcançar projetos megalomaníacos. Com um estilo cortante e ritmo acelerado, dado por frases que se interrompem subitamente, Larraquy cria um ambiente repleto de horror, mas também de humor e ironia, em camadas delirantes de puro estranhamento. No centro, a busca descontrolada pelo espetáculo da arte e da ciência – aspectos tão caros à vida humana – em torno do corpo humano objetificado, a todo momento amputado, fracionado e degenerado. Nos dois casos, aparece a figura sinistra da planta comemadre e seu poder destruidor, muito útil para eliminar o acúmulo de corpos de pouca valia.
Singular e absurdo, La comemadre cairia bem em um catálogo alternativo e ousado.
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