Leitora: Livia Deorsola
Eduardo Halfon nasceu na Guatemala, em 1971, e apenas esse dado já seria o suficiente para nos chamar a atenção: no panorama da literatura hispano-americana publicada no Brasil, é raro que um autor fora do eixo Santiago-Buenos Aires-Havana ganhe o nosso interesse, ainda mais vindo da América Central. Mas para além do que poderia ser tão somente uma curiosidade biográfica, Halfon é dono de uma prosa contundente, sutilmente afiada, por vezes melancólica, pondo em marcha histórias que partem de sua origem judaica e de uma visão crítica e ao mesmo tempo afetuosa da realidade guatemalteca.
Se as marcas familiares dão o tom dos dois livros já publicados no Brasil – O boxeador polaco (contos, Rocco, 2014) e Luto (novela, Mundaréu, 2018), ambos traduzidos por Lui Fagundes –, em Clases de chapín (contos) a Guatemala e sua sociologia são o personagem principal, embora a formação familiar cindida do autor também ocupe algum espaço. Estamos diante de um país pobre da América Central, cuja história carrega a forte herança da civilização maia, do domínio espanhol e, depois da independência, de violentos períodos ditatoriais, além de uma guerra civil já nos anos 60 do século XX (fomentada por castrista, sandinista e paramilitares); sem falar dos terremotos, que colaboram com a instabilidade social e política do país.
Clases de chapín compila uma tríade iniciada em 2007: “Clases de machete”, “Clases de dibujo” e “Clases de hebreo” são as três divisões que agrupam os contos do volume, quatro em cada uma delas. Um chapín é um tipo de calçado feminino espanhol, parecido a um tamanco, com alças, usado a partir do século XV e cujo nome é onomatopeico, ou seja, mimetiza o som produzido ao caminhar. Los chapines também é como são chamados os guatemaltecos em parte da América, adjetivo que nasce como depreciativo, mas que foi apropriado pelos próprios habitantes e transformado em denominação de orgulho. É esse duplo sentido que serve de guia para os contos do livro e que sinaliza a dupla identidade do autor, latino-americano e judeu. Assim, os relatos estão marcados pela crueza e violência com que Halfon enxerga o país que sua família deixou para trás, ao mesmo tempo que lhe lança um olhar respeitoso quanto à alteridade e à tradição; alteridade e tradição que, por outro lado, deixam de fora personagens não autóctones, pouco ou nada competentes na tentativa de integração.
O livro começa com “Mucho macho”, sobre um fotógrafo alemão que, depois de registrar umas tantas cenas em meio a um lugar inóspito da Guatemala, decide fotografar uma menina, achando que sua lente sairia impune. O personagem, cuja arrogância está disfarçada sob a capa do interesse cultural, é um ser deslocado e incapaz de compreender o que o rodeia. O conto abre um caminho que será trilhado ao longo de todo o livro, em que encontraremos crianças desprotegidas, vulneráveis à violência mais visível e a muitas outras, menos óbvias. É o que veremos em “Muñequita”, que relata o estupro de uma menina, atendida por uma equipe médica que faz de tudo para recuperar algo de sua infância perdida. Embora poucos, há contos, sim, em que a perspectiva não parte da infância, como em “Sacerdote”, sobre o ocaso da vida do libanês Salim Mussa, de seu comércio de tecidos e da própria capital da Guatemala.
A segunda parte incorpora a visão da infância agora a partir de narradores em primeira pessoa, como em “Corazón, no moleste”, que mais uma vez trata do desenraizamento de personagens deslocados culturalmente. Já a terceira parte é aberta por um relato surpreendente sobre a presença de criminosos nazistas refugiados no país, experiência mais uma vez filtrada pelo olhar de uma criança.
Em todos os casos, a sutileza com que o autor vai apresentando o núcleo duro das histórias parece ser uma marca de alta relevância no volume. Apesar do peso e da densidade dos contos, as passagens mais fortes e impactantes vão sendo construídas aos poucos e de forma sofisticada – talvez por isso seja suportável ler, por exemplo, “Muñequita”. Tal sutileza pede que o leitor fique atento a detalhes importantes que, no caldo narrativo aquecido de forma lenta, podem passar despercebidos.
É assim que essas aulas, de uma literatura madura e precisa, capturam o leitor: através de personagens quebrados muito cedo em sua vida íntima por um contexto para o qual não contribuíram, violento e opressor, numa desesperançosa e constante atualização do passado.
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