Leitor: Rodrigo Petronio
Anda há um debate em torno de quando exatamente começaram as relações mais estreitas entre ciência e literatura. Alguns autores acreditam que essa interface começou de modo mais sistemático a partir do século XIX. Outros, como Adam Roberts, busca as origens da ficção científica e das relações profundas entre ciência e literatura na Antiguidade. Essa é a mesma premissa de Xavier Duran.
Mais do que definir um gênero, o livro é uma ampla, exaustiva e erudita exploração de todas as aparições que a ciência faz na literatura. Mais do que uma história da ficção da ciência, a obra procura descrever a ciência na ficção. E essa história vem desde as primeiras investigações e escritos gregos e latinos, de Homero e de Lucrécio, e nos combates entre ciência e mitologia, entre saber racional e anticiência.
As alterações da cosmologia a partir do século XVI são decisivas para a literatura. E todo debate em torno desse novo cosmos se encontra no âmago das cosmovisões dos escritores, como Dante e Camões. Os limites entre alquimia e ciência e entre as ciências ocultas e ciências experimentais começam a ser testados na origem da modernidade.
Nos séculos XVI e XVII toda uma teoria dos humores (medicina) vai influenciar a literatura e a compreensão das faculdades, dos afetos e das paixões humanas, espelhadas na ficção. Os tratados de enfermidades do corpo e da alma retornam descritos minuciosamente com toda força em Montaigne, Shakespeare, Cervantes, Burton, Defoe.
O livro se atém mais à literatura a partir do século XIX e do Romantismo. A explosão da ciência, da tecnologia, das máquinas e da artificialização é sem precedentes. Bem como os impactos da ciência e das tecnologias em todas as esferas da sociedade, de modo quase irrestrito. O pensador, artista, alquimista, cientista e botânico Goethe atesta essa guinada.
O mesmo ocorre com a abordagem dos afetos e sentimentos humanos que passam a ser investigados por meio de uma anatomia das paixões, na acepção darwiniana. Assim, Balzac, Flaubert e George Eliot podem nem ter se apoiado diretamente na obra de Darwin, mas todo espírito de época passa a compreender o comportamento humano cada vez mais associado aos instintos e aos medos animais.
Contudo, há um “paradoxo na natureza”. E a ciência o aprofunda. Quanto mais a ciência explica fenômenos da natureza, mais os escritores começam a se ocupar daquilo que seria residual e ainda impassível de explicação pela ciência. Surge a literatura fantástica, tensionada entre natural e sobrenatural. Duran define esse movimento como “insinuação”. Os mestres da insinuação mantêm uma relação ambivalente com a ciência: Hawthorne, Melville, Wells, Maupassant, Poe, Dostoievski, Tolstói, Turguéniev. Nessa linha de
ambiguidade, surgem também os escritores das contradições da realidade industrial: Verne, Dickens, Zola, Kipling, Conrad.
A partir do fim do século XIX e adentrando o século XX, a fisionomia das relações instáveis entre ciência e literatura se altera. A cidade, entendida como um grande entorno artificial, começa a ser tematizada como grande protagonista da modernidade. As máquinas, o excesso, a velocidade, as ondas, a energia, as imagens, as tecnologias, a curiosidade, os carros, as estradas, os pilotos, os aviões, a conquista do espaço: tudo o que se encontra no âmago da vida moderna passa a ser um interesse primordial para os escritores.
Outro movimento paradoxal ocorre: borram-se as fronteiras entre ciência e tecnologia. Essa alteração abre espaço para novos imaginários: utopias e distopias. A corrosão do mundo pela técnica assume o palco das distopias de Huxley, Orwell e Zamiatin. Ao mesmo tempo, a ironia começa a tomar o centro dos debates entre ciência, literatura e vida (Mann, Brecht, Dürrenmatt, Musil).
O livro havia começado com a famosa parábola de Tchekhov, em uma de suas cartas a Suvórin, editor de um dos jornais para os quais colaborava. Por meio dela, o médico escritor diz que a medicina e a literatura são, respectivamente, sua esposa e sua amante. E o livro finaliza com a conhecida imagem do físico e escritor Charles Percy Snow sobre as duas culturas: a cultura das ciências humanas e a cultura das ciências da natureza.
Estas duas culturas se bifurcaram de modo aparentemente irreversível em algum momento da história. Seria possível reconciliá-las? A imagem de Snow tem servido de base para todo debate atual sobre transdisciplinaridade. Duran parte dela para dissecar as relações entre ciência e literatura nos últimos cinquenta anos.
Avaliação
O livro de Duran é excepcional. Um dos melhores livros de divulgação científica que já li. É erudito, amplamente documentado, fluente, didático, e bastante extenso em suas referências artísticas, técnicas, literárias e científicas. O autor, químico de formação, demonstra um profundo domínio de ambos os campos, da literatura e das ciências, o que é louvável e difícil de se ver. À guisa de complementação, seria bem importante se o autor incluísse mais escritoras e cientistas mulheres em seu repertório. E criasse um capítulo relativizando o conceito de ciência e de tecnologia europeias a partir de tradições não-ocidentais. A despeito disso, o livro é valioso e merece muito ser traduzido e publicado no Brasil.
Autor
Xavier Duran é licenciado em Ciências Químicas e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade Autónoma de Barcelona. Colabora com inúmeros jornais e revistas. De 1999 a 2014 dirigiu o programa El Medi Ambienti da TV3 e atualmente é redator especializado em serviços informativos nessa cadeia televisiva. Ganhou vários prêmios literárias do gênero ensaio – Joan Fuster, Joseph Vallverdú (duas vezes) e Joaquim Xirau –, de narrativa – Marià Vayreda – e de divulgação – Prêmio Europeo de Divulgación Científica Estudi General (duas vezes). É autor de mais de 30 livros de ciência e divulgação científica. O livro La Ciència en la literatura (versão catalã o livro em questão) foi ganhador do Premio Crítica Serra d`Or de Investigación em 2016.
O livro recebeu o Premio Nacional de Edición Universitaria como melhor obra de divulgação científica em 2019.
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