Leitor: Antonio R Esteves
Originalmente escrito em catalão pelo jovem maiorquino Sebastià Portell, Ariel y los cuerpos foi publicado em 2019. A tradução em castelhano é do início de 2020. Os materiais de divulgação normalmente apresentam o protagonista Ariel como um personagem que existe e que ama de uma maneira diferente, sempre provisória e desconcertante: “Quando lhe perguntam se é homem ou mulher, Ariel não sabe o que responder. Foi-lhe dito que tem um corpo e que esse corpo poderia amar outros corpos, mas a experiência de Ariel é outra”.
Desconcertante seria a forma mais correta de definir esse romance escrito em uma linguagem clara e poética que flui, apesar do mistério que domina suas páginas. Desconcertante porque misterioso e ambíguo. Misterioso porque a ambiguidade brota de modo desconcertante a cada página. Misterioso como a imagem que o personagem encontra nos espelhos, mesmo quando olha de modo oblíquo, através de seu olhar estrábico.
O protagonista que dá nome à narrativa é ambíguo e misterioso, como já se reiterou. O escritor se vale da ambiguidade do nome Ariel: sua origem hebraica e especialmente sua ambivalência de gênero. A sonoridade que parece água, a forma em que cada uma das letras desliza por sua língua, diz o personagem.
Ariel, um anjo, talvez. Ele dialoga com o Ariel oriundo da peça A tempestade, de Shakespeare, um ser assexuado que pode se metamorfosear em água ou fogo. Ambíguo. Um anjo que não se aprisiona em um corpo feminino ou masculino, mas pode ser ambos. Flui em diferentes corpos, em diferentes desejos.
Nessa rede de diálogos intertextuais não se pode deixar de apontar outro personagem da biblioteca literária de língua inglesa: o Orlando, de Virginia Woolf, também homem e mulher, protagonista do célebre romance homônimo em que a escritora inglesa, já em sua época, discutia a ambiguidade dos corpos e da psique, incitando a pensar na teoria dos gêneros tão em moda nos tempos atuais.
A narrativa é fragmentada, além de misteriosa. Ambígua. São várias as vozes que tentam fazer com que Ariel se corporifique, inclusive uma voz que é dele próprio. Assim, ele terá um corpo diferente de acordo com o olhar que o mira. Mas os olhares podem ser estrábicos, como o de David, o escritor que pode ser o criador de Ariel, ou o próprio Ariel, quem sabe.
Dois são os temas principais. O primeiro é a ambiguidade dos corpos que podem abrigar, de modo fluido, um ou mais gêneros. Ariel pode ser um jovem lindo que causa paixão instantânea em Eugeni, um gay recém-saído do armário, que o vê como homem. Mas a relação entre eles é escorregadia, amor espiritual, sem sexo. O absurdo irrompe no relato a cada instante. Para ele, Ariel não é nem homem nem mulher, não se encaixa em nenhum lado. É a pessoa que o fez pessoa, quem lhe deu um nome. No final ele não sabe se só existe dentro dele. Há dias em que se pergunta se Ariel não será ele próprio.
Associada a essa ambiguidade primordial está a questão da identidade que se constrói através de palavras, de discursos, de relatos. As coisas, e também as pessoas, só existem a partir do momento em que são nomeadas. Daí a importância da palavra e do ato de emitir essa palavra: contar e escrever. Eugeni só é Eugeni porque assim o nomeou Ariel.
O segundo tema principal, associado ao primeiro, é a questão da escrita. O romance é totalmente metaficcional. Um emaranhado de relatos que se cruzam na tentativa de definir o ambíguo, de criar um relato em que se possa encontrar uma identidade. As várias vozes narrativas não apenas contam histórias como escrevem. Ariel tem uma pequena caderneta em que escreve continuamente suas “Notas ao pé da alma”. Eugeni tem também suas anotações, onde seguindo o conselho de seus terapeutas, tenta definir quem é Ariel: todos os textos começam com a tentativa da identidade: “Ariel é...”
O relato se divide em duas partes. Na primeira, “Ariel e o nonato”, conta-se, de modo bastante diluído, o nascimento de Ariel. Inclui as notas de Ariel, as tentativas de Eugeni em definir Ariel e o relato das dez sessões terapêuticas de um narrador em primeira pessoa, Eugeni, ou o próprio Ariel, que procura reconstruir a relação entre ambos e termina com o ambíguo nascimento/morte de Ariel, de Eugeni, ou desse narrador batizado por Ariel como Eugeni.
A segunda parte, titulada “Ariel e o estrábico”, conta, através de uma série de cartas trocadas, principalmente entre David e Sara, a história da relação de David, o estrábico, e Ariel. Também há as dez cartas não enviadas, escritas por Ariel, destinadas a David. Elas são a clave da leitura do romance, no limite da ambiguidade. O tema dessa parte, agora de modo explícito, é a escrita. David é um escritor que está tentando escrever um romance, cujos “manuscritos” aparecem intercalados. Melhor dizendo, embaralhados.
Desse modo, entre os relatos de corpos mutantes, fluidos, líquidos como as relações; entre relatos de identidades líquidas, também mutantes; aparecem outros enigmas que tampouco são resolvidos. Um desses temas é a zona nebulosa que separa, ou talvez junte, loucura e razão. Também aparecem narrativas terapêuticas, no mundo real, ou mesmo no âmbito ficcional, como forma de fazer entender o que é ambíguo ou misterioso o suficiente para não elucidar a questão.
Pelas questões que suscita, pelos enigmas que atraem a curiosidade, uma vez que fazem parte da essência do ser humano, a leitura de Ariel y los cuerpos certamente interessará ao leitor brasileiro. Da mesma forma, é um excelente exemplo para quem quer se aproximar da literatura espanhola atual que vem interessando não apenas ao público queer, e tem recebido ademais especial atenção da crítica em geral.
Jézio H.B.Gutierre, Professor assistente doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. De 2001 a 2015 exerceu a função de...
LER MAIS
Pedro Pacífico, Em 2017, você começou a dar sua opinião sobre os livros que lia nas mídias sociais. O que a inspirou a dar...
LER MAIS
Genero
Inscrição ao boletim eletrônico
Click here
Bem-vindo ao site New Spanish Books, um guia dos novos...