Antônio R. Esteves
Em novembro de 2018, o editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, uma das maiores casas editoriais do país, divulgou no blog da editora sua “Carta de amor aos livros”, na qual além de expor de modo resumido a crise que se abatia sobre o setor, explicava a importância do livro, mais que um mero negócio, um “instrumento fundamental da sociedade para lutar por um mundo mais justo”. Terminava sugerindo que o presente de Natal de todos deveria ser um livro, uma manifestação de amor não apenas à pessoa presenteada, mas também ao próprio livro, esse objeto imprescindível em qualquer sociedade.
Ao escrever estas linhas, que pretendem tratar de leituras e de livros, livros oriundos do mundo hispânico que atravessam os mares para se fixarem no Brasil, não posso deixar de associar a leitura e o livro a um ato de amor, como sugeria Luiz Schwarcz. Um ato de amor similar ao que se via em um seriado que deu vida à televisão espanhola durante sete temporadas, entre 2005 e 2012. Amar en tiempos revueltos, que manteve o público preso à telinha todos os dias durante sete anos, contava várias histórias de amor num período conturbado e difícil para a sociedade espanhola, desde os tempos da Guerra Civil até o início dos anos cinquenta, abrangendo os piores momentos da ditadura franquista. Foram tempos de crise que os espanhóis tiveram que suportar.
Se pensamos naqueles tempos revoltos, vistos depois de tantos anos, e na dificuldade que os espanhóis tiveram que superar para chegar ao estado de bem-estar social de que disfrutam hoje, por mais feridas que tenham ficado sem cicatrizar e por mais crise que se possa constatar, a crise contemporânea, tanto a daqui quanto a de lá, pode ser relativizada. E podem-se vislumbrar saídas que tornem possível amar em tempos conturbados. E pode-se enxergar essa luz que, expulsando as trevas, permitirá a proliferação de leituras que nos levarão, brasileiros e espanhóis, a uma sociedade mais justa e igualitária.
Nestes tempos conturbados que nos toca viver, crise é o que não falta. E uma delas, parece ser consenso geral, ataca o núcleo do processo de produção e distribuição de livros em nosso país. As causas são diversas e a culpa geralmente é distribuída entre editoras e livrarias. O jornal O Estado de S. Paulo dedicou várias páginas do dia 27 de novembro de 2018 em discutir a questão. A jornalista Maria Fernanda Rodrigues indagava qual seria o futuro das livrarias e editoras brasileiras, com o fechamento de várias livrarias e a concordata de duas importantes redes. Parece ser claro que o modelo implantado no Brasil nas últimas décadas não funcionou. Centralizar a venda de livros em megalojas em centros comerciais não deu certo e acabou levando de roldão também as grandes editoras que amargam duros prejuízos.
A causa dessa crise não é apenas a crise econômica geral que desde 2008 vem se espalhando mundo afora. A inflação, o alto preço do livro, as inovações tecnológicas que fazem com que os livros possam ser comprados on line, são fatores que desencadearam a crise, mas não são os mais importantes. O problema, na verdade, parece estar no modelo, na estrutura de produção e não apenas no consumo, uma vez que podemos constatar dados positivos na venda de livros em 2018, considerado ano de crise.
O Presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), Bernardo Gurbanov, um dos membros do Painel de Especialistas de 2019 deste Portal, com a experiência de quatro décadas no mercado livreiro do país, encara os problemas com serenidade. Mantém-se otimista com relação ao futuro dos negócios e aponta formas de superar a crise. Retornar às origens é sua principal sugestão. Já não é possível manter as estruturas gigantescas que vigoraram nas últimas décadas. As livrarias devem voltar para as ruas, ao lado dos leitores, oferendo um serviço diferenciado, uma vez que não poderão concorrer com as vendas on line. Menos gastos, lucros menores. O mesmo deve ocorrer com as editoras. Grupos independentes, pequenos, seletivos na oferta de títulos, catálogos pequenos e bem cuidados, associados a técnicas criativas de distribuição e vendas. É uma saída que vem sendo usada também na Espanha nos últimos tempos.
Em seu otimismo, Gurbanov acredita que “a livraria do futuro terá de encontrar seus melhores caminhos para dar respostas adequadas às novas demandas do consumidor, preservando a ética, inovando permanentemente e testando sua capacidade de adaptação”. E com certeza, este será o caminho.
Afinal de contas, embora o audiolivro tenha avançado nos últimos tempos em outras latitudes, não parece que sua implementação no Brasil, especialmente pelo seu alto custo, vá se generalizar a ponto de colocar em risco o domínio do velho e bom livro impresso. Este, quando é resultado de uma edição cuidadosa e de uma distribuição individualizada, acaba por conquistar novos nichos adquirindo até mesmo certo fetiche. Criatividade e boa qualidade acabam por garantir um preço justo mantendo o prazer da leitura. O mercado espanhol já tem feito isso com sucesso há certo tempo.
Apesar de o Brasil ser praticamente um país de semialfabetizados, ao contrário do que se diz grosso modo, o brasileiro sim lê e lê bastante. O que livreiros e editores precisam fazer é conseguir captar o desejo desses potenciais leitores. Em todo caso, por sua grande população, o mercado brasileiro não é numericamente desprezível. Edições pequenas, bem cuidadas, podem suprir como negócio as grandes tiragens dos best sellers. Uma vez mais, depende da criatividade do editor e das estratégias de venda e distribuição. Há várias experiências no país com bons resultados como por exemplo as feiras de livros promovidas pelas universidades, pelas livrarias ou pelas próprias editoras.
Uma delas é a Festa do livro da Universidade de São Paulo. Na última semana de novembro de 2018 realizou-se na USP a vigésima edição de sua já tradicional feira, denominada Festa do livro. Os estandes de mais de duzentos editores foram visitados por mais de setenta mil pessoas nos quatro dias que durou o evento. O professor Plínio Martins Filho, organizador, faz questão de esclarecer que não se trata meramente de uma feira, mas sim de uma festa, explicando o título. Indo na mesma direção do editor Luiz Schwarcz, ele define a festa como “um ato de amor ao livro, uma festa para o livreiro, para as editoras, para o leitor”. E reitera, apesar das vozes contrárias, que sim, existe público para o livro em nosso país. A festa do livro da USP demonstra que há formas de se vencer a crise livreira no país.
Com objetivos similares, também a UNESP, Universidade Estadual Paulista, realizou sua II Feira do Livro da Unesp, entre os dias 10 e 14 de abril de 2019. Estiveram presentes quase trinta mil pessoas que compraram cerca de 115 mil exemplares das 265 editoras e livrarias presentes. O evento contou, ademais, com uma agenda cultural que incluiu mais de cinquenta atividades, além da presença de diversos escritores e artistas. Da mesma forma que sua homóloga da USP, a feira da UNESP reuniu em sua maioria pequenas e médias editoras cujos títulos em geral são difíceis de serem encontrados nas grandes redes de livrarias. São pequenas amostras de como escapar da crise.
Em 2018, a Dra. Valéria De Marco publicou neste Portal o artigo “Há leitores brasileiros para as letras da Espanha?” Mais que responder positivamente à pergunta, a eminente pesquisadora e professora de literatura espanhola da Universidade de São Paulo faz uma análise concisa e abrangente das relações culturais entre a Espanha e o Brasil, apontando os pontos de interesse que o público brasileiro poderia ter nos livros espanhóis. Trata-se de um texto fundamental para se entender o processo que não pretendo retomar aqui.
Vale a pena reiterar, entretanto, que a globalização econômica e os trânsitos culturais das últimas décadas, reforçaram uma tendência que já se notava desde os anos sessenta: uma espécie integração entre as letras espanholas e hispano-americanas. É notório, por motivos cuja discussão não cabe neste espaço, o papel que as editoras espanholas tiveram na divulgação dos escritores hispano-americanos do fenômeno mercadológico conhecido por “Boom da literatura latino-americana”. Também são notórias a revolução e renovação no mercado editorial dos países hispano-americanos ocorrida com a chegada de intelectuais espanhóis e profissionais da produção e distribuição de livros exilados na América por motivos políticos após a Guerra Civil. Não saberíamos dizer hoje como teria sido a história do livro e da leitura na América Hispânica sem essa contribuição.
Nesse sentido convém apontar que para o leitor médio brasileiro, sempre mais voltado para o eixo Paris-Londres e para os Estados Unidos da América, nunca foi muito clara a diferença entre a literatura espanhola e as literaturas hispano-americanas que, em geral, quando publicados no Brasil, aparecem nas mesmas estantes das livrarias. Na linha que tende a apagar as diferenças nacionais, predominando a questão da língua única, cada vez mais se tende a considerar as culturas hispânicas como um bloco único, apesar da evidente diferença entre a Espanha, rica e europeia, e os países hispano-americanos quase sempre envoltos numa bruma de crises políticas e econômicas. Por interesses econômicos, o próprio mercado espanhol tende a esfumar tais diferenças. Os grupos editoriais espanhóis têm sucursais na América hispânica controlando a produção e distribuição de livros, uma ação que ocorre há várias décadas.
Da mesma forma, escritores e intelectuais em geral tendem a transitar entre os dois mundos. É cada vez mais frequente o caso de escritores nascidos em vários pontos da América que acabam por se fixar na Espanha, realizando muitas vezes um caminho oposto àquele de seus antepassados. A nacionalidade, no sentido do século XIX, deixa de ser importante. A pátria passa a ser a língua. Uma passada de olhos pelas súmulas biográficas dos autores que constituem a lista dos títulos oferecidos neste Portal deixa isso bem claro. O mesmo ocorre com relação às línguas da Espanha, onde ocorre o oposto. Aqui não importa a língua, mas o fato de pertencer às comunidades que formam o Reino da Espanha.
Da mesma forma que se globaliza o capital, as relações culturais esgarçam as fronteiras dos estados nacionais. A cultura e a literatura, com elas os livros que as veiculam, podem viajar livremente pelos dois continentes. E assim, o Brasil, que tradicionalmente tinha a tendência a não se enxergar como membro desse conjunto, pode de alguma forma participar dessa comunidade ibero-americana, mediante um simples processo de tradução.
A partir do final da ditadura franquista houve por parte do governo espanhol um forte empenho em constituir a Conferência Ibero-Americana instaurada na primeira Cúpula Ibero-Americana de 1991. A partir da reunião dos chefes de governo dos países europeus e americanos de línguas portuguesa e castelhana (além de Andorra), vários setores tratam de estabelecer intercâmbios econômicos e culturais. Foi um dos primeiros passos para se pensar uma política cultural convergente entre esses países de línguas irmãs que durante a maior parte de sua história permaneceram de costas uns para os outros. No caso do Brasil, foi um importante passo para a aproximação com países de língua castelhana, especialmente a Espanha.
Na mesma época surge na América do Sul o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL/MERCOSUR) que inicialmente reunia o Brasil e seus vizinhos do cone sul (Argentina, Uruguai e Paraguai) que assinaram o Tratado de Assunção em 1991. O Chile e a Bolívia participam como “estados associados” a partir de 1996 e a Venezuela foi integrada como membro em 2012, estando no momento suspensa. Trata-se de um bloco comercial de livre circulação de mercadorias e de pessoas, prevendo o fortalecimento das relações culturais.
Nesse contexto, resultado de interesses econômicos e com a realização de esforços em várias áreas, está inserido o processo de disseminação do ensino da língua espanhola no Brasil. Trata-se de uma tarefa árdua, com resultados desiguais, como tudo o que se refere à educação no Brasil. Tem contado com a presença forte de instituições espanholas, como o Instituto Cervantes, mas os resultados principais se devem ao árduo trabalho das universidades brasileiras, encarregadas da formação de professores de língua espanhola e de suas culturas no país.
Do sucesso dessa empreitada depende a divulgação em níveis mais amplos das culturas hispânicas. Isso tem ampliado significativamente o conhecimento das literaturas de língua espanhola que faz com que tenha aumentado o interesse pela literatura e pela leitura de livros vindos do universo hispânico.
Envolvido no processo de divulgação da língua espanhola e das culturas hispânicas no Brasil por cerca de quatro décadas, como professor universitário formador de outros professores que atuam nos vários níveis de educação em várias regiões, pude testemunhar o incremento do processo de leitura dos livros oriundos do universo hispânico. Originário de uma cidadezinha do interior do Estado de São Paulo, fundada por uma maioria de imigrantes espanhóis no início do século XX, eu mesmo descendente de andaluzes pobres obrigados a deixar seu país em busca de um futuro melhor, de alguma forma sempre estive associado a essa cultura e pude acompanhar esse processo. Embora meus antepassados fossem analfabetos, transmitiram via cultura oral importantes componentes dessa cultura a ponto de fazer brotar em mim o interesse em estudar a língua espanhola e suas literaturas ao ingressar na Universidade.
Nos anos de minha adolescência meu conhecimento do universo hispânico se devia sobretudo à música hispano-americana, especialmente a de protesto, muito popular naqueles anos em que esses países sofriam, juntamente com a Espanha, as agruras de funestas ditaduras. Ao ingressar na Universidade travei conhecimento com as literaturas, tanto os clássicos espanhóis quando os autores do “Boom latino-americano”, muito em voga por aqueles anos. Também pude estudar de modo mais aprofundado a língua e suas manifestações.
Como professor, pude participar da luta pela divulgação da língua e de suas literaturas e culturas. O livro originário do universo hispânico tem sido minha morada. Talvez isso me autorize a dizer, como meus colegas editores e livreiros, que a relação com o livro deve ser um ato de amor. E que os livros são, como dizem os estudiosos, uma forma de superar a crise. O mesmo se pode dizer do livro em língua espanhola, essa língua cujos falantes têm lido e amado quase sempre em tempos conturbados. E tais livros sempre foram capazes de fazer com que seus leitores superassem esses tempos rumo a uma sociedade mais justa e feliz.
Antônio R. Esteves – FCL-UNESP-Assis
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