Ivan Rodrigues Martin
A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e o longo período franquista que a sucedeu (1939-1975) já foram amplamente representados na literatura, no cinema e em outros tantos modos de expressão artística. A produção e a circulação de obras sobre esse conflito e suas consequências não se restringiram ao território espanhol, ao contrário, ganharam terreno em outros países, dentre eles o Brasil. Mais recentemente, as memórias das pessoas que viveram esse período vêm se constituindo como matérias narrativas de muitos romances gráficos, gênero que vem se expandindo na representação das experiências traumáticas, desde a publicação de Maus (1991), em que Art Spiegelman narra em quadrinhos a vivência de seu pai, um sobrevivente do Holocausto. A repercussão que essa obra teve e sua premiação com o Pulitzer, em 1992, abriram as portas para que outras pessoas que também viveram sob o signo da violência que caracterizou o século XX encontrassem nas páginas de romances gráficos mais um espaço legítimo para a representação artística das experiências humanas que se deram sob o signo do trauma.
Diferentemente de outras conhecidas narrativas gráficas históricas, as espanholas se particularizam por serem constituídas não apenas pela associação entre desenho e texto - elementos básicos do cómic - mas por comportarem diversos outros elementos tanto imagéticos quanto verbais: fotografias de época, reprodução de documentos originais, fragmentos de poemas e de textos testimoniais, prólogos e epílogos que contextualizam historicamente os fatos narrados, etc. A gênese dessas publicações na Espanha data dos anos de 1970, quando alguns artistas começam a publicar tiras ou pequenas histórias que reconstituem algumas experiências pessoais. Mas é a partir dos anos 2000 que essas memórias ganham corpo em edições primorosas de romances gráficos.
O êxito que o gênero conquistou nos últimos anos pode ser observado nos grandes espaços que os romances gráficos vêm ocupando nas livrarias tradicionais, na ampliação da circulação em outros países dessas obras espanholas traduzidas a outros idiomas e também na multiplicação de pesquisas acadêmicas e a consequente publicação de artigos e livros sobre o tema. Exemplo disso foi o Congresso Guerre Civile Espagnole et Bande Desinée, realizado em 2016, na cidade francesa de Angouleme, a meca das histórias em quadrinhos. Esse encontro que reuniu pesquisadoras e pesquisadores de diversos países resultou na publicação da obra Narrativa Gráfica de la Guerra Civil – Perspectivas Globales y Particulares (2020), na coleção Grafikalismos, hoje uma referência bibliográfica obrigatória para quem pesquisa as representações artísticas da GCE e do franquismo.
O interesse do público leitor e da crítica especializada por essas narrativas gráficas vem crescendo paralelamente à ampliação das temáticas tratadas nesses romances e à diversificação das estratégias narrativas empregadas por suas autoras e por seus autores em sua elaboração. Um dos aspectos que caracteriza essa produção é a variedade das fontes dos conteúdos narrados em alguns desses romances. Segundo as origens das matérias narrativas dessas histórias, podemos situá-las em três grupos: as que resultam dos testemunhos, as que são fruto de pesquisas históricas e as que são adaptações de outras obras.
O primeiro deles está composto pelas narrativas que se baseiam em memórias pessoais, escritas ou orais, de quem viveu a Guerra Civil ou o período franquista. Destacam-se entre elas as obras El arte de volar (2009) e El ala rota (2016) em que Antonio Altarriba, com os desenhos de Kim, empresta sua voz para narrar as histórias de vida de seu pai e de sua mãe; a trilogia composta pelos romances Un médico novato (2014), Atrapado en Belchite (2015) e Vencedor y vencido (2016), em que Sento Llobel, baseado no testemunho No se fusila en domingo (2005) conta as experiências de seu sogro, Pablo Uriel, durante os anos da Guerra Civil Espanhola; Un largo silencio (2012), em que Miguel Gallardo recupera um texto testimonial deixado por seu pai, Francisco Gallardo Sarmiento, para compor uma obra formalmente inovadora por sua hibridez textual; El paseo de los canadienses (2015), em que Carlos Guijarro narra a debandada da população civil de Málaga rumo a Almería durante a GCE, a partir de testemunhos pessoais dos sobreviventes e também do relato El crimen de la carretera Málaga-Almería, do brigadista internacional, o canadense Norman Bethune; a trilogia de Jaime Martín, composta pelos livros Las guerras silenciosas (2014), Jamás tendré 20 años (2016), Siempre tendremos 20 años (2020), em que o autor recupera a história a história de seu pai e de seus avós; Estamos todas bien (2017), em que Ana Penyas recompõe as histórias de suas avós; e, claro, a vasta obra de Carlos Giménez, composta por diversas coleções em que o autor tece um testemunho de suas experiências, desde sua infância na década de 1940, quando viveu interno num dos lares do Auxilio Social até a sua vida adulta: Paracuellos composto por oito volumes publicados em três etapas – a primeira no final dos anos de 1970 (volumes 1 e 2); a segunda nos anos da virada do século (volumes 3, 4, 5 e 6) e a terceira nos dias atuais (volumes 7 e 8), Barrio (1977) e Los profesionales (1983-2004)
No segundo grupo estão os romances gráficos compostos por seus autores e por suas autoras a partir de pesquisas bibliográficas e de fontes históricas diversas. Destacamos aqui apenas algumas entre as dezenas de obras que compõem este grupo: Los surcos del azar, de Paco Roca, é considerado por muitos críticos o “Maus espanhol”. Traduzida a vários idiomas e agraciada com importantes prêmios, entre eles o do Salón del Cómic de Barcelona, essa obra apresenta um sensível e necessário diálogo intergeracional, sobre o que significou a Guerra para os mais velhos e sobre o que ela significa para as novas gerações. Do mesmo autor, sobre o tema da Guerra e do franquismo merecem destaque El ángel de la retirada (2010), El faro (2004), El juego lúgrubre (2012) e El invierno del dibujante (2010). Outros romances gráficos que se destacam neste grupo são Triste ceniza. Un tebeo de Robert Capa en Bilbao (2011), de Iñaket e Mikel Begoña; a trilogia Los fantastas de Ermo (2013), de Bruno Loth; A las cinco de la tarde (2013), de Miguel Fernández e Manolo López Poy; La araña del olvido (2015) em que Enrique Bonet trata de uma investigação sobre a morte do poeta Federico García Lorca; Prisionero en Mauthausen (2011), de Javier Cosnava e Toni Cargos; El artefacto perverso (2015), de Fernández Cava e Federico del Barrio; Divisón azul (2013), de Fran Jabara e El violeta (2018), de Marina Cochet, Juan Spúlveda Sanchis e Antonio Santos Mercero, que tratam da temática da homo-afetividade durante o franquismo.
E no último grupo estão as adaptações para quadrinhos de conhecidos romances sobre a Guerra Civil Espanhola. Em Homenaje a Cataluña (2019), Andrea Lucia y Jordi Miguel recuperam a importante obra de George Orwell, sobre sua experiência como combatente na Guerra da Espanha. E o best seller Soldados de Salamina, de Javier Cercas, ganhou sua versão em romance gráfico no ano de 2019.
Entre os mais de cem romances gráficos sobre o tema publicados até agora na Espanha, muitos foram traduzidos a vários idiomas e alguns deles receberam importantes prêmios. O primeiro desses romances que chegou ao Brasil foi A arte de voar, de Antonio Altarriba e Kim, publicado aqui pela Editora Veneta em 2019. Além dessa obra, que já está em sua segunda edição em nosso país, a mesma editora publicou uma tradução ao português do romance gráfico dos mesmos autores, Asa quebrada (2018). Traduzido a mais de dez idiomas e agraciado com as mais importantes premiações dedicadas às histórias em quadrinhos, A arte de voar animou um de seus autores, Antonio Altarriba, a criar uma importante fundação que atualmente fomenta a publicação de novos autores e incentiva os estudos relacionados ao gênero (https://fundacionelartedevolar.com/).
Divisão Azul – um agente infiltrado, de Fran Jaraba, é outro desses romances gráficos espanhóis publicado no Brasil. A editora Palavras além de produzir uma versão comercial para as livrarias, submeteu a obra a um edital do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação, no Programa Nacional do Livro Didático, que avalia e compra livros para abastecer as escolas públicas brasileiras. O romance foi aprovado sem restrições e brevemente chegará às mãos de dezenas de milhares de estudantes em todo o país. Esta mesma editora está publicando neste momento uma tradução ao português de Estamos todas bien, de Ana Penyas, romance gráfico ambientado durante o franquismo, e que foi agraciado com o Premio Nacional del Cómic, em 2017.
Também a Editora ComixZone acaba de publicar aqui, em dois luxuosos volumes, os oito livros que compõem a série Paracuellos, em que Carlos Giménez narra as experiências de sua infância como interno de um dos hogares do Auxílio Social, o de Paracuellos de Jarama, durante os anos de 1940. Esta obra, cujos volumes iniciais vieram à luz ainda nos anos de 1970, após a morte de Francisco Franco, segue sendo construída pelo autor que, no ano de 2019, publicou o oitavo livro da coleção.
A importância da publicação e da circulação dessas obras tanto na Espanha quanto no Brasil é primordial no contexto em que vivemos atualmente. Essa outra forma de narrar as memórias favorece o resgate e a preservação de histórias que são individuais, mas que também são patrimônios coletivos. Além disso, o reconhecimento da linguagem dos quadrinhos como válida para a expressão de histórias importantes, muitas vezes traumáticas, favorece a interlocução com as novas gerações de leitoras e de leitores, pois ainda que sejam ambientadas no passado ou tenham o passado como o tempo histórico principal da narrativa, muitas delas são atravessadas por temas que fazem parte das pautas atuais, como questões relacionadas a gênero, sexualidade, meio ambiente, especulação imobiliária e urbanismo, racismo e intolerância religiosa.
Bibliografia
ALARY, V. & MATLY, M. (orgs) Narrativa gráfica de la Guerra Civil: perspectivas globales y particulares. León: Universidad de León, 2020.
GASCA, LUIS & GUBERN, ROMÁN. El discurso del cómic. Madrid: Cátedra, 2011.
MARTIN, I.R. “Mosaico poético: la novela gráfica y la memoria de la Guerra Civil Española y del franquismo”. Belo Horizonte: Aletria: revista de estudos de literatura, UFMG, 2019.
MARTIN, I.R. “As linhas de força do romance gráfico sobre a Guerra Civil Espanhola.” São Paulo: Revista Caracol. Universidade de São Paulo, 2016.
MARTIN, I. R. “Paracuellos: as origens do cómic sobre o franquismo”. In: Amorim, E.; Cornelsen, E.; Martin, I.. (Org.). 1939 o ano que não terminou. Belo Horizonte: FALE-UFMG, 2020.
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