O enredo de Fondo parece simples e inusitado ao mesmo tempo: cuidando de suas ovelhas, um pastor de uma ilha qualquer percebe que uma delas se desgarrou do rebanho e está presa num despenhadeiro. Ele a resgata, mas escorrega e cai, a queda o imobiliza em uma caverna. A noite chega e com ela a figura Wákala, misto de demônio/deus dos piratas, que propõe um pacto ao pastor: sua vida pela vida de um pirata, o “Pinça” (apelido dado por conta de sua mão deformada).
A partir daí tudo se precipita: o pastor é resgatado por seus vizinhos e após uma noite de sono, parte rumo à concretização do pacto acordado.
Em sua trajetória ocorre de tudo um pouco: dúvidas, brigas dignas de piratas, perseguições, morte e insinuações de que nada parece ser o que de fato é.
E talvez essa seja uma das forças de Fondo, a aposta pela possibilidade, tal como o pacto demoníaco, cujos contornos o leitor deve preencher: cores que exploram as profundezas marítimas em terra, silêncios longos que concedem todo o poder às imagens (não podemos deixar de assinalar que as primeiras cinco páginas da obra mal contêm palavras) e nesse continuum entre silêncio e palavra, o contorno contundente de uma estética soturna se impõe de maneira magistral.
E essa estética lúgubre constrói uma atmosfera que consegue casar questões de fundo existencial (vida e morte) com a dinâmica das histórias de piratas, na encruzilhada desses elementos aparentemente antitéticos, a narrativa entrecortada por longos silêncios, embalados por imagens grotescas e sequências rápidas envolvem o leitor em um redemoinho de sensações orquestradas por uma paleta de cores que impressiona.
Nota-se que há uma preocupação pelo detalhe no traço do desenho e na profusão de contornos de fundo, além de uma clara homenagem a outros autores e personagens de povoam o mundo corsário (John Sfar, o Capitão Gancho e por aí vai).
O final é intrigante e surpreende a ponto de pensarmos na necessidade de continuidade para a saga do pastor. Quem sabe? De qualquer maneira, a obra é primorosa em sua proposta e preenche inúmeros sentidos que encerram seu título, encarado em toda sua ambiguidade por seu pastor protagonista.