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CORTÁZAR
Título: Cortázar
Autores: Jesús Marchamalo e Marc Torices
Leitora: Margareth Santos
Na estela do boom de romances gráficos dedicados à biografia de distintos autores famosos, como Albert Camus, Gabriel García Márquez, Franz Kafka e Juan Rulfo, se situa a obra Cortázar, que pretende contar em palavra e imagem a vida de Julio Cortázar, um dos grandes autores do denominado boom da literatura latino-americana, entre os anos 1960 e 1970.
A tarefa, árdua, diga-se de passagem, se arma a partir da seleção de pontos marcantes da trajetória íntima e criativa do protagonista. Elaborado a quatro mãos, o livro conta com Jesús Marchamalo, jornalista, escritor e curador da exposição Cortázar y loslibros (Madri, 2005) e com Marc Torices, desenhista de quadrinhos com uma pegada mais underground e editor da ZánganoComix, selo dedicado aos aficionados pelos romances gráficos.
Guiados por uma série de declarações de Cortázar, como, por exemplo, a de que sua vida sempre esteve conduzida por lances de sorte ou de casualidade, os dois autores forjaram uma biografia que tenta escapar de uma construção narrativa e imagética linear. Por isso e não por acaso, escolheram abrir o romance gráfico com uma anedota contada por Cortázar: uma história sobre a busca do autor por uma pensão numa cidade sulista (não se esclarece se argentina ou espanhola), que desemboca num universo de lances de sorte e coincidências, que, por sua vez, reverberam o gosto cortaziano pelos ensinamentos de Jung, uma de suas leituras preferidas.
A partir desse arranque salpicado por lances acidentais, a obra esmiúça, de maneira mais ou menos cronológica, a vida de seu personagem principal: o nascimento em Bruxelas (1914); a fuga da família durante a Primeira Guerra Mundial rumo a Zurich, logo a Barcelona (1918) e, por fim, a Banfield, na Grande Buenos Aires (1918); sua infância de menino de saúde frágil e ensimesmada; seus primeiros escritos; seus estudos de literatura francesa; seu breve período como docente no interior argentino; sua experiência com o peronismo, que provocou um rápido período na prisão; o memorável encontro com Jorge Luis Borges e o deslanchar de sua carreira como escritor e, depois, como tradutor pela Unesco, que o levaria a viver em Paris e a viajar intensamente pelo mundo.
De modo geral, o romance omite questões polêmicas, pois não se aprofunda no fato do pai de Cortázar ter abandonado a família quando ele ainda era pequeno, o que lhe causou um trauma carregado pelo resto de sua vida; não problematiza a relação do escritor com o peronismo, cujos episódios o levaram a abandonar a Argentina e, mais tarde, a tornar-se cidadão francês; não penetra nas afinidades do autor com diversas revoluções, como a Cubana e a Sandinista, tampouco explora o intrincado mosaico de suas relações amorosas, que quase sempre estiveram unidas ao mundo da escritura e da leitura. Mas, entende-se, pois esse não é o objetivo do romance gráfico.
No entanto, o livro oferece ao leitor uma boa oportunidade para conhecer a vida e um pouco da obra desse grande autor e o faz por meio de estratégias visuais que buscam mimetizar o extraordinário imaginário de Cortázar através de sua verve lúdica e provocadora. Conduzidos pelas declarações do escritor em uma série de entrevistas —entre elas, a longa e memorável conversa com Joaquín Soler Serrano (RTVE, 1977)— e pela leitura atenta de sua extensa produção, Marchamalo e Torices chegam a visões surpreendentes do mundo do protagonista: a opção por carregar de solenidade seu encontro com Borges, retratando-o em preto e branco, contrasta com a explosão de cores provocada pela experiência de ter vivido a Revolução Cubana; a sensibilidade ao imprimir uma cadência peculiar à palavra e às imagens, em determinados momentos da narrativa, recupera o ritmo do jazz, música preferida por Julio Cortázar, que a incorporou em compasso, efeito e sonoridade aos seus contos e romances; proporcionar-nos uma imagem “palpável” dos famosos “cronópios e famas”, personagens descritos pela boca do protagonista como “seres fantásticos que se assemelham a balões mágicos e simpáticos”, mas que no romance gráfico ganham uma dimensão etérea e esfumada.
Esses momentos de “iluminação” do livro, ainda que quase sempre pautados pelas inúmeras anedotas contadas por Cortázar, ao longo de sua vida e alimentadas em todas suas entrevistas, revelam um desejo patente de mimetização de um verbo marcado pela fragmentação vanguardista e funcionam, no decorrer da narrativa, como collages, experimentos imagéticos plasmados na tentativa de alcançar uma forma de dar vida e concretude ao pensamento do autor de Rayuela.
Aliás, quando Marchamalo e Torices se dispõem a perseguir a proposta de Cortázar ao escrever Rayuela, célebre romance em que o autor propunha distintas maneiras de ler a mesma obra, ou ainda quando pensam a conjunção palavra-imagem a partir da ideia de livro-objeto —tão cultuada por Cortázar—, a narrativa ganha força e humor.
Por fim, também há de se destacar a incorporação inspirada de materiais dos arquivos de Cortázar, a fim de valorizá-lo não apenas como escritor, mas também como um leitor infatigável: a exposição da marginalia de alguns dos livros de sua imensa biblioteca recria um exercício de leitura mobilizador, no qual protestos, críticas, elogios, comentários e discussões vívidas com os autores lidos pelo personagem-protagonista reconstroem um Cortázar inquieto, erigido a partir de uma insaciável busca pelo conhecimento, este, traduzido em inúmeras facetas: o amante da música, do boxe e da literatura, o animal político e irreverente, o sedutor de rompantes de humor e o grande escritor, envolto, quase sempre, em uma nuvem diáfana de fumante inveterado de seus indefectíveis Gauloises.